sábado, 7 de abril de 2018

"Vivo em Alfama há 60 anos, onde nasceu a minha mulher. Só saímos mortos"





"Vivo em Alfama há 60 anos, onde nasceu a minha mulher. Só saímos mortos"

São moradores dos bairros históricos de Lisboa, expulsos das casas. Estão em "resistência" com o apoio do presidente da junta

06 DE ABRIL DE 2018
Rute Coelho

"Tenho 79 anos. Nasci na casa onde sempre vivi, em Alfama. Foi preciso vir uma miúda com vinte e tal anos para me expulsar. Pois eu dali só saio morta!" Chama-se Felicidade Silva mas o seu rosto idoso e cansado não mostra o estado de alma do nome. Recebeu uma saraivada de palmas depois do seu testemunho, a atestar bem a solidariedade que une os moradores nos cinco bairros históricos da junta de freguesia Santa Maria Maior (Alfama, Baixa, Chiado, Castelo e Mouraria), em Lisboa, reunidos ontem em assembleia no Palácio da Independência para a iniciativa "Os Rostos do Despejo".

Despejados, com data marcada para deixarem a casa onde alguns nasceram e criaram os filhos, esses rostos têm nome, são "gente de carne e osso", como disse o presidente da junta, o socialista Miguel Coelho, autor desta campanha contra o esvaziamento do coração histórico da cidade em nome dos interesses imobiliários e turísticos.

O despejo e o desprezo não escolhem idade. Inês Andrade é um dos rostos novos na lista, já bem conhecida dos lisboetas pelo seu papel à frente da associação Renovar a Mouraria. Foi uma das pessoas que se levantou para dar o seu testemunho: "Vivi na Mouraria desde 1999 até ao final do ano passado, altura em que o senhorio decidiu aumentar-me a renda de 500 para mil euros. Procurei casa mas está impossível." Na Renovar Mouraria Inês tem recebido "todos os dias dezenas de pessoas que estão a receber ordens de despejo".

"Estamos no abismo", clamou o presidente da junta para a multidão revoltada contra os "hostéis" uma das expressões que mais se ouviu ali. O abismo tem números a sustentá-lo: existem 1676 unidades de alojamento local (UAL) na freguesia de Santa Maria Maior, ou seja, 47,21% do total de UAL em Lisboa( 6073).

A junta de freguesia colocou três advogados ao serviço (gratuito) dos moradores que estão a ser despejados numa "estratégia de resistência" como a definiu Miguel Coelho. Os advogados "aconselham estas pessoas a ir a tribunal. Ninguém tem de aceitar, só com ordem do juiz", sublinha o autarca.

O caso de Eduardo Correia, 82 anos, que também se levantou para falar na assembleia de freguesia, mereceu aplausos entusiásticos. "Represento a Natália Correia, minha mulher, que nasceu há 82 anos na casa onde vivemos, em Alfama. Eu estou ali há 60 anos. Recebi uma ordem de despejo para abandonar a casa até ao dia 1 de agosto de 2018. Mas não abandono a casa nem a minha mulher. Dali só saímos mortos".

O antigo serralheiro mecânico contou ao DN que a renda da casa no Beco das Cruzes, nnº11, 1ª esquerdo, começou por ser de 150 escudos (75 cêntimos) passou para 700 escudos (3,5 euros ) e depois já na época do euro para 30 e poucos euros e, por último, para 70 euros. Em agosto de 2017, o casal recebeu uma carta a fechar o contrato do arrendamento alegando que a inquilina, Natália não respondeu no prazo de 30 dias a um aviso escrito sobre a atualização da renda para 70 euros em 2013. "Em agosto de 2013 o marido da senhoria avisou que íamos receber essa carta mas disse para ignorarmos. Fomos enganados." A última proposta da senhoria foi estender mais um ano de arrendamento para o casal mas a pagar 450 euros de renda. "Os advogados da junta, que nos estão a ajudar, nem responderam. Vamos esperar."

"Fui enganada", desabafa Felicidade Silva, 79 anos, residente com o marido no Pátio do Prior, 11, r/c em Alfama. "Nasci naquela casa". Pagava agora 105 euros de renda. "A senhoria mandou-me uma carta em setembro de 2017 para deixar a casa em fevereiro deste ano." Mas Felicidade e o marido não arredaram pé. "Aquela miúda está a dar cabo de mim, nem aparece para falar connosco e mandou-me a renda para trás", desabafa, referindo-se à jovem senhoria. Aconselhados pelos advogados da junta, Felicidade e o marido têm depositado sempre o valor da renda na conta da senhoria, para a falta de pagamento não ser argumento quando for a altura.

Levantou-se na assembleia para falar mas rapidamente se sentou e calou, tomada pelas lágrimas. Conseguiu mais tarde fazer a sua intervenção. Ao DN, Elisa Vicente, de 76 anos, conta que mora com o marido em Arco Escuro, Alfama, há cinco anos mas viveu mais de 40 anos naquele bairro. "Recebi carta do senhorio em como não me renovava o contrato porque vendeu o prédio a uma firma. Tenho que arranjar casa até 30 de abril de 2019 mas o meu marido está acamado, não fala nem anda. Vamos para onde?". A renda que o casal paga é de 450 euros. O marido tem uma reforma de 800 euros de funcionário dos seguros e Elisa aufere 400 euros.

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