quarta-feira, 21 de março de 2018

Vão fechar mais três livrarias históricas na Baixa de Lisboa / Livros e antiguidades estão a ser expulsos da rua do Alecrim








Vão fechar mais três livrarias históricas na Baixa de Lisboa

A Trindade, Campos Trindade e o Centro Antiquário do Alecrim estão a despedir-se dos leitores. Foram despejadas pelo senhorio.

20/03/2018 às 12:23

A Campos Trindade está aberta desde 1960.
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Ricardo Farinha

Primeiro fechou a Aillaud & Lellos, depois foi a vez da Pó dos Livros, também em Lisboa. No Porto, a Leitura encerrou portas; enquanto em Coimbra, a Miguel de Carvalho despediu-se dos leitores. Há mais três livrarias alfarrabistas históricas em Lisboa que anunciam o seu fim nos primeiros meses de 2018: a Livraria Trindade, a Campos Trindade e o Centro Antiquário do Alecrim, na Rua do Alecrim, na Baixa da cidade.

O motivo foi o mesmo dos outros espaços: a subida das rendas e o despejo dos senhorios, que já não estão tão interessados em acolher espaços como estes.

“Em 2013, depois de estarmos há mais de 30 anos neste local, a renda foi atualizada ao abrigo do novo regime de arrendamento (cinco anos), não negociável, um novo contrato surgiu fazendo tábua rasa do anterior contrato. A lei cumpriu-se”, escreve no Facebook António Trindade, o responsável pela Livraria Trindade.

“Entretanto, recebemos uma carta no dia 11 de janeiro com a informação sobre a conclusão do contrato, com saída no final de setembro do presente ano, e apesar dos contactos que fizemos, não há por parte do senhorio qualquer possibilidade negocial. Metade da rua vai ser despejada.”

Ou seja, apesar de terem aceitado aumentar a renda há cinco anos, agora não tiveram qualquer hipótese para negociar um futuro naqueles espaços. Têm todos de sair até 30 de setembro.

“Achamos que este negócio tem história e tem carisma, não há quem em Lisboa não conheça a rua do Alecrim com os seus alfarrabistas e com os seus antiquários. Um turismo de massa arrasa com os centros históricos e faz com que as cidades se tornem todas iguais, com as mesmas lojas e com os mesmos produtos em todo o lado. Os grandes grupos financeiros podem fazer agora o seu festim e acabar com aquilo que era único em Lisboa. Fica a aparência de uma cidade que já foi plural e distinta, e que, presentemente se verga a uma única actividade, o turismo. Quem visita Lisboa vê uma casca, o que lhe dava a vida, já desapareceu ou vai desaparecer.”

António Trindade, que faz parte da terceira geração da família a gerir a livraria, está naturalmente magoado com a decisão do senhorio. “Os meus avós eram antiquários e alfarrabistas, conhecimentos que passaram e progrediram na nossa família. Provavelmente, a família que há mais tempo está neste negócio e que teve a sua origem em frente do Mosteiro de Alcobaça na década de 30 do século XX”, explica.

Não é o único da família que está prestes a perder a sua livraria. Oito portas acima, na mesma Rua do Alecrim, fica a Livraria Campos Trindade, que também vai fechar este ano, contou à NiT uma funcionária que não quis revelar mais informações. É do livreiro Bernardo Trindade, primo de António Trindade. Ambas foram fundadas em 1960. No entanto, a Trindade de António não está perdida para sempre. Pelo menos não é a intenção do dono, que pretende reabrir a livraria numa zona da cidade menos central.

Centro Antiquário do Alecrim
Esta livraria existe desde 1955. “O meu pai começou a vender livros aos oito ou nove anos na Feira da Ladra, salvou milhares de documentos”, conta a responsável pelo espaço, Margarida Marques Leite. “É uma tristeza. O senhorio, que é da mesma família há 60 e tal anos, disse que o meu espaço vale 10 mil euros de renda. Mas que, mesmo que eu conseguisse pagar os 10 mil euros, não me renovava o contrato. Tentámos concorrer ao programa [da autarquia] das Lojas com História, mas acho que não vai mudar nada.”

Ao contrário dos seus colegas e vizinhos, o Centro Antiquário do Alecrim, que começou na Rua da Misericórdia com outro nome, não tem negócio online e só vende na loja. “Este é um negócio de paciência, mas tem melhorado nos últimos quatro anos. Tenho clientes de todo o mundo. Adoro ver a cidade de Lisboa com este movimento, mas é triste que se tenha de sacrificar este tipo de lojas, para abrir um hostel ou um hotel. Não me disseram que é o que vai acontecer, mas de certeza que será.”

Margarida Marques Leite diz que está a ponderar mudar-se para uma pequena loja no centro comercial Espaço Chiado, que tem recebido ultimamente várias lojas de discos. “Mas é muito diferente passar deste espaço de 500 metros quadrados para uma loja de 25 metros quadrados.”

Segundo um estudo da Confidencial Imobiliário, as casas no centro histórico de Lisboa estão duas vezes mais caras do que em 2013. Um grupo de cidadãos criou o movimento Rock in Riot, que tem o primeiro evento de rua este sábado, 24 de março, para “ocupar a rua e reclamar a cidade”.





Livros e antiguidades estão a ser expulsos da rua do Alecrim

São mais duas lojas históricas a desocupar os espaços onde estão há décadas porque o senhorio não lhes quer renovar o contrato de arrendamento. Aos poucos e poucos, estes "negócios da paciência"estão a desaparecer da baixa da cidade.

CRISTIANA FARIA MOREIRA 21 de Março de 2018, 8:25

Partilham a rua que “ajudaram a criar”. Dedicaram toda a vida aos livros, aos documentos, aos manuscritos que a família lhes deixou. Agora, têm o mesmo destino pela frente: fechar as portas. No final de Setembro, a rua do Alecrim já não terá os livros da Livraria Trindade e do Centro Antiquário do Alecrim.

No princípio de Janeiro, ambos os estabelecimentos receberam uma carta do senhorio a dar-lhes conta de não querer renovar o contrato de arrendamento. O PÚBLICO não conseguiu entrar em contacto com os proprietários do prédio.

“É um espaço que está avaliado em dez mil euros por mês. Mas mesmo que eu pagasse esse valor eles não o arrendariam. Querem o espaço livre”. Se calhar, “para mais um hotel”, diz Margarida Leite, 53 anos, que trabalha no Centro Antiquário do Alecrim desde os 20 e herdou o negócio do pai.

Em 1956, Américo Marques enraizou o seu negócio na rua do Alecrim, num espaço onde antes funcionara a antiga Fábrica Âncora, dos licores, de onde ficaram os rótulos das garrafas que preenchem hoje uma das paredes. E ali ficaram entre livros, desenhos, gravuras, quadros, mapas como o que Margarida diz ser o primeiro mapa impresso de Portugal, de 1560, de Álvaro Seco.

O pai começou com oito anos por vender na feira da ladra. Vendia O Mosquito, a revista com “histórias aos quadradinhos” que foi fundada em 1936. Américo ficou sem mãe muito cedo. O pai era embarcadiço, andava a pôr carvão nos barcos que andavam pelo mundo durante sete ou oito meses. E Américo andava por aí sozinho. Ia buscar o material que vendia, às terças e sábados na feira, aos ferros velhos que compravam o recheio das casas.

“O meu pai salvou manuscritos, inclusive cartas de D. Sebastião que ele vendeu mais tarde à Torre do Tombo, cartas de reis, primeiras edições [de livros]. Antigamente era tudo para desfazer e fazer papel”, conta Margarida Marques. Se fosse vivo, o pai teria hoje 95 anos. E recorda como, “na febre da ida do homem à Lua”, o pai fez chegar a Neil Armstrong a obra de Francis Godwin, L’homme dans la lune (O Homem na Lua, século XVII). “[O astronauta] mandou-lhe uma fotografia assinada a agradecer o livro, que relatava a primeira viagem à Lua, com uns gansos que levavam o homem”, conta.

Ali, “é tudo original. Não há reproduções”, garante Margarida. Pode-se tocar em tudo, sentir o cheiro, a textura do papel. É também disso que vive um antiquário. Do cliente que entra e se perde entre os detalhes, que troca dois dedos de conversa, que sabe que “ali se encontram coisas que não se encontram em mais lado nenhum”. Diz-nos que a loja se estende muito além da sala da entrada, mas que não mostra mais porque já começou a encaixotar as 14 toneladas de livros que ali tem guardados.

Separar o trigo do joio
Este ano, foi já anunciado o fecho de portas da Aillaud & Lellos, da Pó dos Livros, em Lisboa, da Leitura, no Porto, ou da Miguel de Carvalho, em Coimbra. Na porta ao lado do Antiquário do Alecrim, a Livraria Trindade tem o mesmo destino. António Trindade, 50 anos, culpa o “terramoto” da especulação imobiliária que atravessa Lisboa e que está “a destruir” o que ali está há muito tempo e que “dá o charme” à cidade.

É ele que está hoje à frente do negócio que diz ter começado pela mão dos avós ainda na década de 1930, em Alcobaça, e por onde passavam “presidentes, ministros, intelectuais, historiadores, escritores”.

“Isto está-nos no corpo. O que nós fazemos é uma espécie de selecção do trigo do joio. E, às vezes, até salvar, obras do século XVI, XVII”, diz.

“Aí há dois anos vieram-me aqui dois tipos que encontraram numa cave de uma casa de Lisboa a segunda ou terceira edição do Dom Quixote (1615)”, conta.

O certo, reconhece António, é que “não se lê como se lia”. Vende muito para estudantes universitários, mas conserva os clientes que procuram “as jóias, as raridades”. É que os livros “têm essa magia e há quem goste de ter na mão a primeira edição da Mensagem”. É isso que mantém estas casas, onde se encontra o que não se vende nas grandes cadeias, diz o livreiro, enquanto aponta para os sacos com volumes de arquitectura que tinha acabado de comprar e para outros cheios com os “setecentos e tal livros” da colecção Vampiro.

Ainda assim, pode não ser o fim do negócio. Era para sair em Setembro, mas em finais de Abril conta mudar-se para outra loja “relativamente perto” da rua do Alecrim.

E com isto, quem perde? “A cidade de Lisboa”, diz Margarida. “As casas típicas estão a desaparecer e depois passa a ser hotel com hotel”.

“O centro de Lisboa está a ser vendido a capitais estrangeiros”, continua António. “Tem que se cuidar daquilo que é único, aquilo que dá o charme à cidade. E Lisboa vai perder esse charme”. É que a cidade, nota, vive dos alfarrabistas, das casas de penhores que já desapareceram, das lojas das velas, das Belas Artes, das casas de cerâmica como a vizinha Sant’Ana, que tem também o fim anunciado.

“Eu não me sinto vítima. O que eu aprendi com os meus pais, com os meus avós e com os meus tios, ninguém me tira. Vou para outro sítio e sou capaz de reconstruir. O que me custa é o que está a acontecer à cidade”, diz António.

Margarida diz que o Antiquário do Alecrim se vai mudar para uma pequena loja do centro comercial Espaço Chiado, na rua da Misericórdia. Um “espaçozinho com 20 metros quadrados” que não está na rua. E “este tipo de negócios precisa de ter vida, de ter pessoas a passar”. “É o negócio da paciência”, como diz, e “devia ser mais apoiado”.

Ambas as lojas dizem ter reunido com a câmara e tentado concorrer ao programa Lojas com História, mas admitem já não haver tempo para travar o processo.

Agora, é tempo de começar a encaixotar livros e recordações e assim despir um espaço que sentem como deles. De se despedirem dos leitores e da rua que ajudaram a fazer.

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