sábado, 31 de março de 2018

Para Carla, Maria e Rafael, a crise começou agora






REPORTAGEM
Para Carla, Maria e Rafael, a crise começou agora

Moradores do centro histórico de Lisboa pressionados a deixarem as suas casas. No último ano duplicaram os pedidos de ajuda no escritório de advogados da Junta de Freguesia.

ANA DIAS CORDEIRO Texto e DANIEL ROCHA Fotografias 31 de Março de 2018, 7:34

Viver no coração de Alfama é o mesmo que estar sozinho no mundo – pelo menos para Rafael Moreno, com quase 80 anos. A tristeza pesa nas pálpebras dos seus grandes olhos claros e o seu olhar é mais arrastado que o seu andar. Falar custa-lhe: não pelo cansaço; pelo que tem para dizer.

É como se se sentisse a mais nas duas assoalhadas onde se conta toda a história da sua vida, no quarto da mãe onde ele nasceu, ou na assoalhada ao lado, separada pela cozinha interior, uma divisão onde tem quarto e escritório, papeladas e canetas, candeeiro aceso, óculos pousados, como no tempo em que trabalhava num escritório de uma empresa.

É demasiado mau o que sente. Por isso abrevia, enquanto mostra, num gesto generoso mas rápido, a casa que quer guardar até morrer. A proprietária do prédio insiste que ele saia, para renovar o prédio e lhe dar outro uso.

Agora que ela lhe tirou a caixa do correio (o carteiro entrega tudo ao vizinho) e o intimida com a sua constante presença, Rafael Moreno vive no medo de ser levado dali. Quiseram fazer-lhe um contrato de cinco anos e ele recusou. Teme represálias, por isso o nome é fictício.

Tem sido atormentado, meses a fio, pelo ruído ensurdecedor das obras que se prolongam de manhã à noite, nos andares de baixo e de cima. É sua convicção que tentam desgastá-lo, ver até quando aguenta o ruído demolidor de arranjos aqui e ali, que lhe despedaçam o prédio e o quotidiano.

Mais pedidos de ajuda
De cada vez que recebe um aviso – e são muitos – vai de Alfama à Rua dos Fanqueiros na Baixa onde três advogados se dedicam a tempo inteiro a tratar casos como o dele: em 2017, o escritório tinha recebido 300 pessoas, pelo menos 200 das quais por ameaças de despejo. Esse número mais do que duplica em 2018: “Todas as semanas 20 pessoas vêm bater-nos à porta”, diz a advogada Carol Gonçalves. E dessas, 15 são pelos mesmos motivos. Além destes, "muitas mais pessoas vivem estas situações, mas não nos procuram por desconhecimento ou medo de represálias".

Quando os contratos são anteriores a 1990, o senhorio nada pode fazer sem o inquilino concordar. Mas as pessoas são pressionadas a sair, explica a jurista. Conta como o advogado do senhorio entrou na casa de uma senhora e rasgou o contrato de arrendamento. O documento existe, é válido, mas a postura ameaçadora mantém-se neste e noutros casos de pessoas que vivem sozinhas.

No ano passado, chegaram ao escritório de advogados dezenas de casos em que o senhorio fechara a conta bancária na tentativa de impedir o inquilino de pagar a renda, e ter argumento para uma ordem de despejo por incumprimento.

“Nesses casos, fazemos uma consignação em depósito todos os meses e o dinheiro é depositado no banco” em nome do senhorio, explica Carol Gonçalves entre o corrupio de telefones que tocam com pessoas a tentar esclarecer situações ou marcar um atendimento. Neste escritório de advogados, junto à Praça da Figueira, a primeira coisa que se diz às pessoas é: “Não assinar nada”.

A palavra de ordem é “resistir”, completa o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, que contratou estes advogados para se dedicarem a tempo inteiro a estas ameaças e tentativas de despejo dos moradores.

“Quando em 2014 começámos a perceber que se tratava mesmo de uma estratégia concertada sobre esta população, contratámos este escritório só para tratar deste assunto. Com uma orientação muita clara que a Junta de Freguesia deu: resistir”, explica.

“Na dúvida, segue tudo para tribunal”, defende Miguel Coelho. “Mesmo nos contratos onde aparentemente não assiste a razão legal ao inquilino, ele não deve aceitar o despejo a não ser com ordem do tribunal.”

Em 2012, com as alterações impostas pela troïka às leis do arrendamento, no sentido de liberalizar o mercado, passou a ser mais fácil despejar inquilinos dos prédios, independentemente de o contrato ser anterior ou posterior a 1990.

Mudanças nas leis
Antes de 2012, era necessário um documento comprovativo da câmara a atestar a necessidade de obras profundas ou demolição, o que tornava muito difícil justificar a saída dos inquilinos. Com as alterações de 2012, para forçar a retirada temporária ou definitiva de arrendatários, passou a ser apenas exigido ao senhorio apresentar uma declaração do técnico de projecto, por si contratado, de que eram necessárias obras profundas.

Essa obrigatoriedade voltou a vigorar com as alterações em 2017 mas em função do valor do património. Ou seja, se a obra tem um valor igual ou superior a um terço do valor patrimonial do imóvel, automaticamente é considerada obra profunda, explica Miguel Coelho.

Entre 2012 e 2017, as pessoas com menos de 65 anos eram retiradas facilmente e recebiam uma indemnização. Mesmo nos contratos sem termo passou a ser possível despejar as pessoas em caso de necessidade de obras profundas, bastando para isso o certificado de um técnico contratado pelo proprietário.

Aqueles que tinham mais de 65 anos estavam protegidos mas nem sempre era possível, como previa a lei, realojá-los, na mesma freguesia ou freguesia limítrofe, com a mesma renda. Nesses casos, mudaram-se para as periferias de Lisboa.

Terminados os cinco anos da entrada em vigor dessa lei, chegam agora ao fim os novos contratos passados em 2012 ou 2013. “Os efeitos dessa lei de 2012 estão a verificar-se agora e os senhorios não renovam os contratos", diz o advogado Carlos Fernandes. "Os próprios senhorios e os promotores imobiliários aproveitam-se da fragilidade destas pessoas.”

E recorrem a diversas tácticas intimidatórias, acrescenta Carol Gonçalves. "Fazem pressão psicológica até ao momento em que intervém um advogado." Muitos inquilinos não sabem que a mudança de proprietário não obriga a alterar o contrato.

As obras para importunar são frequentes, como os contactos, presenciais ou por carta, a informar que as pessoas têm de sair porque o prédio necessita de obras ou porque o contrato vai mudar, ou terminar. E mesmo nos casos em que o prédio necessita de obras, e esse argumento seria validado pela câmara, não é certo que as obras se façam por essa via: num caso em Alfama, o proprietário quer esvaziar o prédio, com esse argumento para retirar as pessoas, mas o objectivo é vender o imóvel como está, realizando uma mais-valia, mesmo sem as obras.

Especulação e alojamento local
“Se as pessoas têm um contrato válido, ninguém os pode tirar de lá”, garante o presidente da Associação Nacional dos Proprietários, António Marques Frias, que atribui a principal responsabilidade das tentativas de forçar as pessoas a saírem das suas casas no centro histórico de Lisboa aos negócios de grupos com interesses imobiliários, alguns estrangeiros: chineses, franceses, brasileiros, e também portugueses. “O alojamento local existe” mas não é o motor principal destes movimentos, considera.

Há prédios que, num só ano, mudaram de proprietário três vezes e de todas as vezes, o preço aumentou, conta. “Há uma super especulação.” Reconhece a pressão como bullying sobre o inquilino mas diz que estes actos não são praticados pelos senhorios tradicionais, mas sim por quem compra.

Um idoso sozinho pode ser levado a assinar um novo contrato, temporário, por não estar informado dos seus direitos. Aconteceu com Maria, há poucos meses.

Maria tem 80 anos e um contrato de 1978. Quando o prédio foi vendido uma primeira vez em 2014 a uma investidora chinesa, Maria assinou em 2015 um contrato de um ano renovável todos os anos. Fê-lo sem aconselhamento ou conhecimento dos filhos.

Nada aconteceu até Agosto de 2017, quando recebeu uma carta a informá-la que teria de sair da casa em Janeiro de 2018. A carta vinha de um segundo novo proprietário, uma empresa de construção portuguesa, que acabara de comprar a casa que estava desde 2014 em nome da senhora de nacionalidade chinesa.

Induzidos em erro
Maria foi abordada pelo advogado da nova empresa proprietária que lhe explicou que tinha realizado o negócio da compra do imóvel apenas com base na validade do contrato de um ano que esta assinara em 2015, e que por isso ela teria de sair. O advogado justificou que não tinha conhecimento da existência de um contrato vitalício anterior, e por isso não o poderia reconhecer. Também ele fora enganado pela anterior proprietária que só lhe omitiu a existência do contrato vitalício.

Assim, e com o objectivo de vender o prédio todo, vazio, o anúncio na página de uma agência imobiliária, mostra o prédio à venda com a data em que os vários andares ficarão livres à medida que os inquilinos forem saindo, de acordo com o plano da nova empresa proprietária. A data que aparece para o andar de Maria ficar livre é Fevereiro de 2018. O prédio ainda não foi vendido e Maria ainda não saiu.

“Ela está muito agarrada à esperança de ficar ali. Tem a vida dela toda ali. Vai quase todos os dias à Igreja de São Domingos, onde se organizam para as ajudas ao Banco Alimentar. Tem as pessoas com quem convive desde sempre”, diz a filha. “Mas decidimos deixar correr o processo.”

Ainda não receberam a resposta à contestação apresentada, logo em Agosto, à ordem de despejo. Por falta de meios, os processos estão atrasados no Balcão Nacional do Arrendamento, criado em Janeiro de 2013.

Na recusa à carta de “oposição à renovação do contrato”, o advogado apresentava argumentos vários, como o de a arrendatária ter sido “criminosamente induzida em erro” quando levada a assinar um contrato por um ano em 2015 ao mesmo tempo que lhe garantiam “que se manteria na casa enquanto fosse viva”. Alegava ainda ter havido “manifesto vício de formação da vontade”, no sentido de Maria ter sido induzida em erro, mas também apontava o facto de o novo contrato (a termo) ser assinado sem o anterior (vitalício) ter sido revogado.

Expulsos e acolhidos de emergência
Carla Cunha não chegou a ter medo ou esperança. Não houve tempo. A sua vida numa casinha no Pátio do Carrasco, junto à Sé, terminou no dia em que lhe cortaram a água e a luz, por ordem do novo proprietário que acabara de comprar dois imóveis do típico pátio onde os moradores realizam arraiais familiares.

Quando o contrato de cinco anos estava a poucos meses de terminar, o senhorio, que sempre os tratou bem, informou Carla que ia vender o prédio, mas que poderiam ficar, nem que fosse através da assinatura de um contrato de um ano quando em Setembro terminasse o contrato de cinco anos. Em vez disso, Carla Cunha recebeu ordem de saída. “Neguei-me a sair. Disse para chamarem a polícia.”

Não haveria ordem de despejo, porque sempre pagaram todas as contas e rendas a tempo, acreditou Carla. Mas quando lhe cortaram água e luz, em pleno mês de Novembro, o casal e as duas crianças tiveram de ser acolhidos numa casa da Protecção Civil em Marvila. “Fomos vítimas de bullying. Estas empresas não olham a meios para atingir os fins."

Guarda uma chave da casinha do bairro onde os quatro tinham a sua vida, a escola das crianças, o centro de saúde, e só a entregará em tribunal. Não espera ganhar por via judicial, mas não aceita o que lhe fizeram sobretudo tendo a seu cargo duas crianças pequenas.

“Eu resisto. Por nós, pelo que me fizeram. E resisto também pelas pessoas desprotegidas que são pressionadas a sair e não sabem o que fazer”, diz Carla com convicção. “Quando for a tribunal, pelo menos, vou ter oportunidade de olhar o juiz nos olhos e de lhe perguntar se ele acha que esta empresa praticou o bem ao colocar uma família com duas crianças na rua. Não sou contra o turismo. Sou contra estas leis que privilegiam as empresas e não os habitantes. Em Lisboa não existe só gente rica ou de classe média. Existe a gente pobre que é a alma da cidade. Se não fossemos nós, Lisboa também não era nada.”

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