quinta-feira, 22 de março de 2018

O regresso do pato-bravismo



Estaria o leitor disposto a entrar num avião pilotado pela hospedeira de bordo? Ou a ser tratado num hospital pelas auxiliares de enfermagem?
O problema Cara Helena é que os "Comandantes do Avião" e os "Médicos Especialistas" têm demonstrado uma grande arrogância autista e total indiferença nas suas intervenções, em áreas Patrimoniais consolidadas ... ( Mono do rato, Praça das Flores, Museu Judaico / Alfama, etc., )
"O ensino da Arquitectura em Portugal tem sido dominado por uma geração que nega a importância do restauro."
(...) "Com efeito, toda a retórica do autor é construída à volta de uma argumentação que, de forma enganadora, só reconhece duas alternativas para a intervenção arquitectónica na cidade: arquitectura contemporânea, leia-se modernista, em ruptura e afirmação consciente e demarcada com a envolvente histórica, que o autor considera como a única capaz de representar autenticidade, ou o perverso “fachadismo”, ou artificial operação cutânea que constitui uma mentira perigosa para o futuro da Arquitectura e da autenticidade da cidade.
Ora o “fachadismo” é sem dúvida uma perversão, mas sim, do conceito do restauro integral que considera um edifício histórico como uma unidade indivisível, entre fachada e interior.
Para dar um exemplo muito rapidamente: qual é o valor de um edifício pombalino, que faz parte de uma solução sistemática e global para uma reconstrução funcional de uma imensa área vítima de um cataclismo sísmico, sem a “gaiola”, que constitui precisamente a solução estrutural anti-sísmica pensada por engenheiros da mesma reconstrução?
Toda esta confusão “arquitolas” é fruto do facto de o ensino da Arquitectura em Portugal ter sido dominado ideologicamente por toda uma geração que, de forma manipuladora, tem sempre negado o reconhecimento da importância do ensino e da prática do restauro. Utilizando de forma manipuladora o argumento da Carta de Veneza crítico do restauro integral, os arquitectos de restauro são vistos e acusados no ensino como apologistas do sacrílego “pastiche”. Compreende-se o nervosismo de Nuno Almeida e de toda uma classe, agora sujeita a “honorários limitados” e a um crescente e justificado clamor crítico da opinião pública, capaz de inibir e amedrontar os técnicos responsáveis pelas aprovações."
António Sérgio Rosa de Carvalho in "A tempestade perfeita" 6 de Abril de 2017 
https://www.publico.pt/2017/04/06/local/opiniao/a-tempestade-perfeita--1767806

O regresso do pato-bravismo
Estou convencida de que isto foi aprovado sem que a maioria dos deputados tivesse sequer noção do que fora feito em comissão.

Helena Roseta
22 de Março de 2018, 6:32

O Parlamento aprovou há dias em votação final uma lei que, a pretexto de salvaguardar os chamados “direitos adquiridos” de um pequeno grupo de engenheiros civis matriculados até 1987 em quatro faculdades de Engenharia do país, acabou por deitar por terra uma espécie de “Tratado de Tordesilhas” que desde 2009 e ao fim de muitos anos de luta pelo direito à arquitectura tinha permitido estabelecer fronteiras claras entre as responsabilidades e campos profissionais de engenheiros, arquitectos e engenheiros técnicos. Foi então aprovada a Lei 31/2009, em resultado de uma grande negociação entre as três ordens profissionais e o Governo, que representou cedências de todas as partes em benefício de um acordo de convivência e cooperação, indispensável no sector da construção.

A lei deixava um período transitório, para que engenheiros, engenheiros técnicos e outros profissionais de formação média, como os agentes técnicos de arquitectura e engenharia, conhecidos como ATAE, que desde 1973 podiam assinar projectos de arquitectura, o pudessem continuar a fazer por cinco anos — o tempo necessário para, querendo, se qualificarem como arquitectos e se inscreverem na respectiva ordem. O prazo de transição acabou e o Governo anterior resolveu prorrogá-lo. Terminada esta prorrogação, surgiu no Parlamento uma petição de um grupo de engenheiros, invocando os tais “direitos adquiridos” ao abrigo de uma directiva comunitária sobre formação profissional exigível para o exercício de profissões na área da saúde e da arquitectura. Portugal transcreveu a directiva, mas não actualizou devidamente a lista dos cursos superiores nacionais mais antigos, mantendo nela aquele pequeno grupo de engenheiros. O provedor de Justiça entendeu recomendar à AR a correcção desta situação (um grupo de não arquitectos poder exercer a profissão à luz da directiva comunitária, mas não o poder fazer em Portugal à luz da Lei 31/2009) e assim renasceu uma polémica, que tem 45 anos, sobre quem pode e quem não pode fazer projectos de arquitectura.

O tema é antigo e não gerou grande interesse mediático, por parecer circunscrito a um pequeno grupo de pessoas. Mas de repente entrou em acção aquilo a que eu chamo a “caixa preta” do processo legislativo — a produção concreta do texto final da lei em sede de especialidade, na comissão parlamentar, sem qualquer escrutínio público.

O ponto de partida foi um projecto de lei do PSD que procurava responder à petição dos engenheiros, transformando em definitiva a situação transitória consagrada em 2009. Mas as alterações na especialidade deturparam completamente o projecto inicial. O PAN apresentou um aditamento que, além de alterar a Lei 31/2009, que era o que estava em causa, alterava também a Lei 41/2015, que estabeleceu as qualificações mínimas para se poder obter um alvará de obra pública, consoante o tipo de obra e o seu valor (a que se dá o nome de “classe de obra”). E o que acabou por ser aprovado na comissão e confirmado no plenário com os votos favoráveis do PSD, do PCP, do PEV e do PAN foi que a partir de agora os tais ATAE, que correspondem aos antigos construtores civis diplomados e que têm uma formação profissional de cinco anos a partir do 9.º ano de escolaridade, podem passar a deter alvarás de obra pública não até 332.000 euros (classe 2), como estipulado em 2015, mas até 1.328.000 euros (classe 4). Bastou mudar o número da classe de 2 para 4 nos quadros anexos à lei e temos como resultado que a partir de agora, se esta lei for promulgada, a generalidade das obras públicas lançadas pelos municípios, por exemplo, que são desta ordem de grandeza, passam a poder ser feitas por técnicos sem qualquer formação superior.

Estou convencida de que isto foi aprovado sem que a maioria dos deputados tivesse sequer noção do que fora feito em comissão. A inclusão à última hora, na especialidade, da alteração da Lei 41/2015 terá passado despercebida. A passagem da “classe 2” à “classe 4” num extenso quadro anexo é código para iniciados. Ninguém trouxe o problema para a discussão pública. Eu própria perdi um bom par de horas a perceber, quadro a quadro e linha a linha, o que ia ser posto à votação final.

Se isto não é o regresso do pato-bravismo ao grosso das obras públicas, então não sei o que seja. Será que podemos continuar a legislar de forma tão opaca? Será este o caminho para a qualidade da democracia e para a necessária e urgente qualificação transversal do sector da construção? E para que servirá tirar um curso de Arquitectura e inscrever-se numa ordem profissional com fortes exigências deontológicas? Estaria o leitor disposto a entrar num avião pilotado pela hospedeira de bordo? Ou a ser tratado num hospital pelas auxiliares de enfermagem? Não me interpretem mal. Todas as profissões são dignas, tenham ou não acesso por via de uma formação superior. Mas será que todos podem fazer o trabalho uns dos outros? Ou foram apenas os deputados que votaram, aliás, de forma algo confusa, que deixa em dúvida quantos votos a favor existiram de facto, sem que muitos se apercebessem do retrocesso radical que estava em causa?

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