segunda-feira, 26 de março de 2018

Em Lisboa os espaços públicos vivem-se de outra forma e a culpa é da Expo 98



Em Lisboa os espaços públicos vivem-se de outra forma e a culpa é da Expo 98

Sofia Cristino
Texto
Hugo David
26 Março, 2018

20 anos da EXPO 98
A Expo98 fez nascer espaços de lazer e convívio junto ao rio, contaminando o resto do centro urbano. E até deu um novo miradouro à cidade. Passadas duas décadas sobre a exposição mundial, a forma como encaramos o espaço público é muito diferente do que era antes dela. Arquitectos paisagistas envolvidos naquele projecto urbanístico, ouvidos agora por O Corvo, dizem que se deu uma revolução nesse aspecto em Lisboa. Antes, o espaço público tinha uma forma muito canónica de se usar. “Os passeios eram utilizados para caminhar e os bancos para nos sentarmos”, diz João Gomes da Silva. A falta de manutenção destes espaços, contudo, é o que mais preocupa estes profissionais. “O Trancão tem de ser resgatado daquela condição marginal”, apela, por seu turno, João Nunes. Ambos sugerem formas de se coser o tecido urbano do Parque das Nações com o do centro de Lisboa. E lembram que a zona oriental tem muito por onde crescer. Há, ainda, quem esteja preocupado com a preservação da memória. “Nas comemorações do aniversário da Expo, nunca ninguém se atreve a colocar um pé antes de 1998. Há uma história que foi completamente camuflada”, diz um estudante de mestrado, a preparar um trabalho sobre o assunto.

Arquitectos, arquitectos paisagistas, geógrafos e outros indivíduos que estudam e pensam a cidade de Lisboa têm quase todos a mesma opinião: a Expo 98 foi um caso indiscutível de sucesso, ao resgatar uma zona industrial degradada e ao reaproveitar uma vasta área ribeirinha, operação da qual resultou uma mancha urbana totalmente reabilitada, com uma área verde com cerca de 80 hectares. Mas, além um novo parque urbano, o evento mundial trouxe consigo novas formas de pensar o espaço público, revalorizando a relação com o rio, de caminho inspirando um requacionar da forma de nos relacionarmos com a restante frente ribeirinha. Mudava-se assim radicalmente a forma de viver o centro citadino.

O arquitecto paisagista João Gomes da Silva, autor do projecto dos espaços verdes do recinto da Expo 98, diz que hoje existe uma nova cultura de utilização das áreas comuns. “O espaço público tinha uma forma muito canónica de se usar, os passeios eram utilizados para caminhar e os bancos para nos sentarmos. A forma como as pessoas utilizam a cidade passou a ser mais exigente e atenta”, explica a O Corvo. João Nunes, arquitecto paisagista que participou na construção do Parque Tejo, corrobora a opinião do colega. “Houve uma total revolução do espaço público. Depois da Expo, as pessoas não voltarão a aceitar critérios de qualidade inferiores, ninguém aceitará viver num edifico que esteja enfiado num sítio com lama”, diz.

 Nos últimos anos, Lisboa assistiu a várias intervenções de valorização do espaço público. Há passeios mais largos, novas zonas de lazer e voltou-se a ter um contacto com o rio – o qual estava, até então, em grande medida barrado pelo dedicar em exclusivo à indústria portuária da zona oriental da cidade. Durante algum tempo, tais requalificações foram deixadas para segundo plano, tendo sido ignorada a sua importância na vivência colectiva, explica a O Corvo Paula Torgal, presidente da Secção Regional Sul da Ordem dos Arquitectos. “A Expo deu a Lisboa mais espaço público e um novo miradouro sobre o rio, que é essencial e, cada vez mais, na revitalização da cidade. As cidades precisam de respirar e as pessoas precisam de espaços de convívio. O que foi esquecido ao longo de alguns anos”, afirma.

Nos anos seguintes à Expo 98, ambicionava-se que a transmutação realizada no Parque das Nações contaminasse toda a zona oriental, havendo quem antevisse a inevitabilidade de um contínuo urbano revitalizado entre Santa Apolónia e aquela parcela da cidade. A freguesia de Marvila já começou a dar os primeiros sinais de transformação e fala-se, cada vez mais, em formas de “coser” o tecido urbano do Parque das Nações com o dos Olivais e da Baixa, reforçando-se assim a ligação de Lisboa ao rio. Diversos arquitectos partilham, aliás, a mesma visão no que diz respeito à união da frente rio do Tejo.

 “Além da frente ribeirinha e a da rua principal do Vasco da Gama, há várias fronteiras que podiam ser mais disseminadas. Não nos podemos esquecer que o Parque das Nações está entre o rio Tejo e a linha férrea e há que fazer pontes com os Olivais, Loures e o centro da cidade. É preciso coser mais este tecido urbano com o da Expo”, defende Paula Torgal.

 João Gomes da Silva salienta, também, que a zona ribeirinha tem muito potencial. “Parte desta costela oriental de Lisboa ainda está por reabilitar, é muito rica e tem muito por onde crescer. Vinte anos não é muito tempo para requalificar uma cidade, é muito pouco até. Os períodos de requalificação dos espaços verdes são mais extensos, o resultado não é imediato. As plantações têm de ser feitas na altura certa e é preciso esperar algum tempo para que se instalem”, explica.

 Os projectos que estão em desenvolvimento, como o do empreendimento imobiliário no Poço do Bispo ou a renovação do Campo das Cebolas, e os que se anunciam, como o fim da ocupação da doca defronte do Campo das Cebolas por parte da Marinha, deixam antecipar, diz Jorge Gonçalves, geógrafo, docente do Instituto Superior Técnico, que o grande objectivo destas iniciativas é “ligar o Parque das Nações à Praça do Comércio, formando um grande arco ribeirinho ligado através de espaço público de qualidade”.

 Paula Torgal ressalva, contudo, que estas mudanças têm de ser feitas com cautela. “Temos de ter mais atenção com Marvila, não podemos fazer lá mais um teatro ou um casino. Temos de ter muito cuidado com o riquíssimo património industrial que temos, que tem sido muito adulterado e pode ser recuperado. Marvila está a começar a ter o seu boom e tem escalas de espaço público bastante interessantes”, avalia. As cautelas decorrem na constatação de casos de insucesso no centro de Lisboa. “Têm-se mantido as fachadas dos edifícios e todo o interior tem sido demolido. Tudo aquilo que tem de ser intervencionado tem de o ser, mas não se pode deixar cair um miolo inteiro de um quarteirão salvando somente uma fachada, é gravíssimo”, critica.

 A preocupação em reabilitar a zona ribeirinha de Lisboa já se tinha manifestado no final dos anos 80, com um Concurso de Ideias para a Zona Ribeirinha de Lisboa lançado pela Associação dos Arquitectos Portugueses, hoje Ordem dos Arquitectos. “Nessa altura, surgiram trabalhos muito interessantes, propondo fórmulas inovadoras de solução para a ligação de Lisboa ao rio”, conta o geógrafo Jorge Gonçalves. “A enorme discussão sobre o Porto de Lisboa deve ser lida à luz dos efeitos da Expo, já que a ocupação da Administração do Porto de Lisboa de praticamente toda a frente ribeirinha inviabilizava o que começava a ser evidente para todos: a generalização de uma relação com o rio Tejo marcada mais por um usufruto do espaço público e não tanto de reparação naval ou de comércio marítimo”, repara, ainda.

 Em determinado momento, apenas o Cais das Colunas e a zona de Belém proporcionavam uma relação mais próxima com o rio. Apenas em Belém era possível desenvolver actividades de recreio náutico, aliás. Depois da Expo, todo o esforço que tem vindo a ser realizado na transformação da relação da cidade com o rio originou resultados visíveis, nomeadamente entre Alcântara e Belém, na Praça do Comércio e no Cais do Sodré. Nos últimos anos, considera Jorge Gonçalves, até foi o efeito do turismo a dar “um grande impulso” para que houvesse mais investimento no espaço público.

“O Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), a Fundação Champalimaud e espaços públicos inovadores, como a Ribeira das Naus ou o Cais do Sodré, mostram como a frente ribeirinha não só voltou a assumir um papel central na identidade urbana dos lisboetas, como permitiu uma diversificação funcional, onde persiste a actividade portuária com actividades de recreio náutico, cultura e lazer”, considera José Gonçalves.



Mas, enquanto vários pontos de Lisboa iam sendo contagiados pelo efeito positivo da Expo, inspirando intervenções na Baixa e noutras zonas ribeirinhas da cidade, o Parque das Nações ia perdendo as regalias iniciais, conhecendo um estado de deterioração inesperado. O número de pessoas que elegiam aquela parte da cidade para passear à beira Tejo aumentou, não tendo sido feito um acompanhamento da manutenção que o espaço requeria, alerta João Nunes.

 “À medida que a zona envolvente do parque se foi densificando e a comunidade foi crescendo, com um aumento da procura e até de algum vandalismo, dever-se-ia ter reforçado a capacidade de manutenção. Mas, pelo contrário, esta diminuiu”, lembra. O arquitecto paisagista sugere, por isso, que se faça “um grande projecto de reconstrução do parque”. “Há uma série de passeios e pontões onde houve abatimentos, que não foram corrigidos. Vinte anos é muito tempo, sobretudo para um parque que é construído muito depressa e não tem tempo para os assentamentos. É preciso reconstruí-lo”, observa.

 Alguns jardins e áreas relvadas parecem ter sido deixados ao abandono, vai-se vendo um ou outro remendo. Mas o que salta mais à vista é a Zona Norte do parque, junto à foz do rio Trancão, “um dos problemas mais complicados de se resolver”, considera João Nunes. “O Trancão tem mesmo de ser resgatado daquela condição marginal e abandonada em que ficou, mas esse reaproveitamento só se pode fazer com argumentos de densificação do seu uso. Senão houver programas que atraiam pessoas para ali, é muito difícil consegui-lo”, considera. Chegaram, contudo, a existir projectos para aquela zona. “Havia muitos programas para o Trancão que ficaram por fazer. Houve uma certa ganância da Parque Expo, empresa que geriu aquela zona oriental, na tentativa de concentrar tudo no mesmo sítio, na Zona Sul”, observa.

João Gomes da Silva atribuí a culpa pelo estado de abandono de alguns jardins a uma rápida transferência de competências da Parque Expo para a Junta de Freguesia do Parque das Nações e à situação de crise que o país viveu, a partir de 2008. “Houve um momento de alterações políticas e do próprio contexto económico e social, que não foi o melhor, transformando-se condições óptimas em condições de uma grande escassez. Os jardins estiveram abandonados durante meses, senão mesmo um ano, o que se reflectiu muito na qualidade do espaço. Provocaram-se estragos irreversíveis”, nota. João Nunes diz mesmo que a transição foi “muito traumática”. “Houve dois anos dramáticos, as pessoas estavam desesperadas porque o parque foi um grande investimento e depois teve uma grande decadência, com critérios de conservação mesquinhos”, observa.

 Vinte anos passados da exposição mundial, os vulcões de água, o Oceanário e o Pavilhão Atlântico, hoje denominado de Altice Arena, são dos poucos equipamentos que permanecem com as características originais, não deixando esquecer o que ali aconteceu. Muitas infra-estruturas da Expo 98 passaram a ter uma nova utilização, como foi o caso do Pavilhão do Futuro, onde está instalado o Casino de Lisboa, desde 2006.

 Paula Santos, co-autora deste pavilhão, vê com pena o destino que lhe foi dado. “A decisão de manter o edifício permanente após a finalização da Expo, quando tinha sido projectado para ser efémero, foi penosa porque, durante anos, o edifício esteve fechado e em degradação. Deveria ter sido demolido”, considera. A arquitecta diz, ainda, que se podem aproveitar melhor os equipamentos construídos naquela época.

 “Há equipamentos, como o Pavilhão do Conhecimento, o Oceanário e a Feira Internacional de Lisboa (FIL), que ainda funcionam bem, mas seria fundamental recuperar o Pavilhão de Portugal. A área habitacional tem projectos de diferentes qualidades e tipos e está pouco interligada ao resto da cidade. Embora os arranjos paisagísticos na marginal tenham sido cuidadosamente tratados e desenhados, há ainda trabalho por fazer para que parte do Parque das Nações não se transforme numa cidade dormitório”, propõe.

 Paula Torgal concorda que o que correu menos bem no período pós-Expo foi o subaproveitamento de alguns equipamentos. “Lisboa ganhou uma zona nova e, nesse aspecto, foi um sucesso. Mas teve falhas, como todos os percursos rápidos. É uma zona que ficou desequilibrada, com uma concentração de equipamentos um bocadinho excessiva, com uma série de edifícios de várias ordens, culturais e empresarias, condomínios de linhas arquitectónicas muito díspares, uma ‘rua de restaurante sim, restaurante sim’ e o Campus de Justiça”, considera. Segundo a arquitecta, construíram-se demasiados pólos de atracção. “Era escusado construir alguns equipamentos numa área tão pequena, parece-me que está um bocadinho estanque”, repara, ainda.

 Paulo Carmo, investigador a realizar um trabalho académico sobre a Expo 98, no âmbito do mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, gosta de olhar as cidades como se fossem um desenho em que nada se deve apagar. Em declarações a O Corvo, lamenta que a preservação da memória tenha vindo a ser negligenciada. “O espaço é um desenho que vai tendo novas linhas e traços, mas os anteriores não se apagam. Nas comemorações do aniversário da Expo, nunca ninguém se atreve a colocar um pé antes de 1998. Há uma história que foi completamente camuflada e dissimulada pelo protagonismo que teve a Expo 98”, diz Paulo, que, em 1995, também fotografou aquela parte da cidade.

 O também fotógrafo e designer de comunicação testemunhou a revitalização do território que é hoje a freguesia do Parque das Nações e não quer que a história seja esquecida. “Tive a sorte de observar o intermédio entre o apagamento total do que era e a construção de raiz de tudo. De Chelas, via-se a chaminé a deitar fumo, o que dava um protagonismo enorme àquele espaço. Há muita gente que foi para lá viver, e muitos que nasceram lá, que não sabem nada do que estava lá. A memória deles fica na Expo, como se tivesse sido uma coisa que nasceu do nada”, afirma.

Além da antiga refinaria da Sacor, a torre da Petrogal e as indústrias que ali estiveram instaladas durante muitos anos, Paulo Carmo lembra a importância histórica da Doca dos Olivais. A doca correspondia ao local de aterragem dos hidroaviões que chegavam ao aeroporto marítimo de Lisboa. Nos anos 40 do século XX, foi construído o aeroporto da Portela, coexistindo ambas as  infra-estruturas aeroportuárias em actividade durante algum tempo.

“Os hidroaviões faziam as ligações intercontinentais e, os aviões, que aterravam na Portela, faziam as ligações continentais. O barco que está no logótipo da Junta de Freguesia do Parque das Nações era o barco que fazia as ligações de transportes do rio entre a Margem Sul e Lisboa, não havia pontes nem barcas. Há poucas pessoas que o sabem”, recorda.



A Avenida de Berlim que, ainda hoje, liga as duas infra-estruturas, naquele tempo tinha o nome de “avenida entre-aeroportos”, conta, por seu lado, Jorge Gonçalves. “Um exemplo invocador da perda de memória e da necessidade da sua urgente recuperação relaciona-se precisamente com a doca, onde hoje se encontra o Oceanário”, observa.  “Lembro-me, também, do matadouro municipal e do centro de inspecção e classificação de ovos que se dirigiam ao mercado de Lisboa”, dá conta o geógrafo.

 O arquitecto João Nunes diz que há uma lacuna de publicações sobre o que foi aquela parte oriental da cidade, reforçando, também ele, a importância da memória. “Nos anos 60, ia lá com o meu pai e víamos as carcaças dos hidroaviões e as fragatas. É um sítio que tinha uma energia muito forte e foi sempre acumulando uma espécie de romantismo, quase nostálgico, com os barcos abandonadas na lama. Era uma espécie de cemitério das coisas, um sítio em constante acumulação de sedimentos, onde as fábricas e os barcos iam morrer e ali ficavam”, recorda, saudosista.

No sentido de recuperar o que aquela zona foi, Jorge Gonçalves sugere que se criem dois espaços culturais, um museu do Tejo e um museu da zona oriental de Lisboa. “A criação do museu talvez ajudasse na recuperação das comunidades que foram usando o rio. Antes da industrialização, o transporte de gentes, de cereais, vinhos, lenha e outras mercadorias desembocava nas margens lisboetas, como no Poço do Bispo. As comunidades piscatórias avieiras são elementos incontornáveis para a memória fluvial e mereciam marcar presença num espaço cultural”.

 Esta parte da cidade, explica ainda, foi muito “ostracizada” pelo seu carácter popular ligado a comunidades operárias, ao trabalho portuário e, ainda, à forte presença dos grandes conjuntos de habitação social localizados em Chelas, Olivais Norte, Olivais Sul, Encarnação, entre outros. “Num mapa da cidade de 1988, é possível ver como se considerava apenas relevante ilustrar o espaço urbano que ia do Restelo à zona de Alfama e Santa Apolónia, sendo toda a restante área a nascente omitida”, lembra.

 Na opinião do geógrafo e dos arquitectos, ainda há, por isso, muito a fazer para cumprir plenamente os objectivos iniciais da Expo 98. “É preciso mais tempo para consolidar esta grande intervenção. A Expo cumpriu muitos objectivo mas não foi um exemplo extraordinário. Há várias fronteiras que precisam de ser trabalhadas. O Parque das Nações está balizado entre o rio e uma linha férrea e as vias de acesso não cosem a cidade”, diz Paula Torgal. Outro dos problemas que ainda permanece, diz Jorge Gonçalves, é o da quase “inexistente mistura social” no parque residencial.

 “Ao não se definir diferentes categorias de habitação local, o resultado foi uma excessiva homogeneidade, traduzida numa elevada guetização social. Ainda hoje, a imagem de ilha do Parque das Nações não se diluiu, continuando muito marcada a fronteira de separação constituída sobretudo pela linha de caminho-de-ferro. As únicas cinco ligações viárias para fora do Parque das Nações servem para conferir esta ideia de enclave no meio da cidade”, considera. A recente constituição da freguesia do Parque das Nações pode ser “um bom sinal”, considera o geógrafo, para que se consiga, um dia, “atenuar a segregação entre espaços urbanos tão próximos fisicamente, mas tão distantes social e urbanisticamente”.




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