quinta-feira, 1 de março de 2018

As intervenções de musealização da Sé de Lisboa e a defesa do património da cidade




                                         VÍTOR SERRÃO


As intervenções de musealização da Sé de Lisboa e a defesa do património da cidade

Eu, que sempre fui e sou patrimonialista militante, penso que existe largo equívoco neste ruidoso caso.

 VÍTOR SERRÃO


1 de Março de 2018, 6:35

A intervenção do Fórum Cidadania Lx, dirigido por Paulo Ferrero, tem sido sempre muito relevante como serviço público, seja pelo alerta que traz a lume, seja pelas denúncias de atentados lesa-património que corajosamente assume.

No caso que envolve a recuperação do claustro e demais estruturas da Sé de Lisboa, porém, deve ser recomendada uma maior ponderação nas opiniões críticas vindas a lume. Que se proteste pelo sucessivo adiamento da intervenção (que desde o fim do século passado se anuncia e adia), tal devia ser o único tema em agenda, e não uma recusa liminar do projecto. O claustro gótico, com suas capelas ornadas ao longo da Idade Moderna de valiosos equipamentos artísticos (uma delas serviu de primeira sede à Misericórdia de Lisboa), era uma ruína desoladora que agonizava sem aparente remissão, tal como outros espaços catedralíceos, tanto góticos como neo-medievais... Tudo parecia ser irrecuperável e recordo o esforço conjunto de várias entidades, incluindo em primeiro lugar as instâncias do Patriarcado de Lisboa, e as do IPPAR de então, para enfrentar tais dificuldades.

Ora fizeram-se longos e imperiosos estudos históricos, artísticos e arqueológicos, que eram necessários e revelaram uma parte substancial da História oculta (eu sei do que falo, estive envolvido nesse processo, com o Prof. Luís Aires-Barros, a Prof. Maria João Neto e o meu centro da Universidade, nos anos 90). Os serviços arqueológicos desvendaram, entretanto, as importantíssimas estruturas habitacionais, incluindo os níveis púnico, romano, islâmico, e medievais, que criaram uma dificuldade acrescida, retardando a obra: mas, sendo eles importantíssimos como são, tiveram de impor uma solução integrada de consenso. Por isso, o esforço em curso para recuperar as ruínas à luz dos testemunhos, a fim de devolver o espaço gótico na sua integridade, incluindo as suas capelas e acervos, conciliando-as com o testemunho arqueológico, para cabal apreciação dos visitantes, só pode ser matéria de encómio.

Eu, que sempre fui e sou patrimonialista militante, penso que existe largo equívoco neste ruidoso caso: estão-se a confundir reconstruções novecentistas hodiernas, tanto no caso do pano muralhado refeito, como no da torrela-escada, como se se tratasse de parcelas do acervo medievo original... Pode haver pormenores a limar no projecto, por certo, mas existe trabalho sério, teses doutorais, relatórios, o testemunho arqueológico e o que decorre de fotografias antigas, etc., que provam iniludivelmente a não-ancianidade das partes removidas/alteradas.

Se é certo que ainda há imenso de original na Sé (que as campanhas de restauro do início do século passado por Augusto Fuschini e Couto Abreu mantiveram), como sejam o deambulatório gótico de D. Afonso IV (o mais antigo do país) e o claustro gótico primevo (com suas adjacências), trata-se de um monumento estranho, sem dúvida, com muitas adições e refazimentos 'puristas', que o tornam um espaço 'mal-amado' e nebuloso para os visitantes. A Sé de Lisboa — que é ao mesmo tempo medieval e neomedieval, arqueológica, renascentista e barroca, uma mão-cheia de marcas das suas várias 'contemporaneidades' e revivalismos históricos — precisa de ser percebida como de pão para a boca, e ser conservada, musealizada e revalorizada. Por isso, o seu tecido arquitectónico e artístico tem de ser bem 'explicado' em termos histórico-artísticos para que ele se possa entender: essa a função de um museu catedralíceo como o que se deseja implantar nas estruturas intervencionadas.

Este projecto que caloradamente se discute (do arquitecto Adalberto Dias) não pode ser comparado, por exemplo, com os crimes lesa-património (que muitos defenderam e defendem, por razões nada patrimonialistas e muito de ganância ultraliberal) para o espaço dos ex-conventos da Colina de Santana. Por isso, digo sim ao debate, à transparência, ao respeito pelo 'espírito do lugar', conciliando princípios com a necessidade de acudir aos monumentos que definham sem remissão, como é o caso. Não acompanho, pois, o Fórum nesta petição, ao contrário do que tenho feito, de coração aberto, com tantas outras nobres causas que assumiu. Se haverá aspectos pontuais a discutir, que se discutam serenamente, e deles se fale, sem pôr em causa, contudo, uma acção global de recuperação que é mais do que meritória — é necessária! É isso que está em causa: intervir em quase-ruínas é tarefa difícil, não o fazer é sermos cúmplices com a desmemória.

Defender o nosso património é também não deixar de apoiar o que de bom se faz no plano técnico e interdisciplinar: neste caso da Sé de Lisboa existe uma intervenção assente na pesquisa, nas metodologias e no conhecimento do 'espírito do lugar', que dá soluções e busca a devolução, à comunidade e aos visitantes, de um monumento nacional emblemático que está em vias de ser resgatado da sua triste sorte.

Historiador de arte; Centro ARTIS – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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