quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A histórica Livraria Aillaud & Lellos, na Rua do Carmo, fechou de vez as suas portas / É mais uma que fecha na Baixa: Livraria Aillaud & Lellos desmancha a casa




A histórica Livraria Aillaud & Lellos, na Rua do Carmo, fechou de vez as suas portas 
POR SAMUEL ALEMÃO • 9 JANEIRO, 2018

A competência e a simpatia sem adornos de Teresa e de Isabel já não estão disponíveis para quem as conhecia, há décadas, atrás do velho balcão de madeira, sempre deferentes para quem ali rumava em busca daquele livro. As duas funcionárias da Livraria Aillaud & Lellos, na Rua do Carmo, deixaram de poder atender os clientes no último dia útil do ano passado, a 29 de dezembro, pondo assim um ponto final a uma estória iniciada em 1931. Apesar de ter sido incluída, no ano passado, na recém-formada rede do programa “Lojas com História”, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), a livraria terá encerrado as suas portas definitivamente. A confirmá-lo, desde este fim-de-semana, apresenta as montras cobertas por folhas de papel brancas e o dizer “Encerrado” na porta, por detrás do vidro com o autocolante ostentando o logótipo do “Lojas com História”. O desacordo entre o senhorio e a empresa proprietária da loja quanto ao valor da renda terá sido a causa de tal desfecho.

 “Estou chocada, não acredito”, repetia uma cliente de há três décadas, ao final da tarde desta segunda-feira (8 de janeiro), os olhos a vogarem em memórias projectadas na fachada de Art Déco, desenhada por António José Ávila do Amaral, colaborador de Cassiano Branco, tal como o seu interior. “Está tudo a fechar, é uma vergonha, não sei o que se passa com esta cidade. Mais uma livraria encerrada”, desabafava a O Corvo Teolinda Alves, engenheira civil de 62 anos e uma confessa generosa compradora de livros. “Há mais de 30 anos que aqui vinha comprar livros. Esta casa, juntamente com a Livraria Portugal e a Sá da Costa, eram os meus pontos de referência aqui, não percebo como é que uma coisa destas pode acontecer”, revoltava-se a antiga cliente, nascida em Bragança e lisboeta por décadas de vivência, evocando a qualidade do atendimento e, sobretudo, o serviço inestimável prestado a todos os bibliófilos, naquela que era uma das mais icónicas livrarias da capital portuguesa.

 Isto porque, nos últimos anos, para além das novidades, sempre expostas na montra esquerda, a Livraria Aillaud & Lellos especializara-se em fundos de catálogo de algumas das mais prestigiadas chancelas livreiras nacionais, a preços de desconto. “Se eu quisesse alguma coisa da Cavalo de Ferro, da Teorema, da Antígona ou da Cotovia, sabia que era aqui que podia encontrar. Aliás, muitas vezes, quando gostava de uma certa obra e queria oferecer uma dezena de exemplares aos meus amigos, vinha cá e pedia-lhes, que elas conseguiam sempre. A loja sempre vendeu, não percebo como pode acontecer uma coisa destas”, afirma Teolinda, possuidora de uma biblioteca privada de “milhares de livros”. Das suas livrarias de eleição, resta a Sá da Costa, lá mais para cima, no topo da Rua Garrett. “Noto uma mudança muito grande na cidade. É verdade que, até há pouco, muito estava devoluto. É bom que se renove e recupere. Mas só vejo lojas incaracterísticas e hotéis. Qualquer dia, esta bolha rebenta”, profetiza.

 Quando acaba de dizer estas palavras, a dois metros de si está Carla Figueiredo, 55 anos, também ela suspensa pela incredulidade, mesmo em frente à porta que, ainda há pouco, era franqueada por muitos dos que procuravam algumas obras descatalogadas ou fora do circuito dos escaparates das livrarias mais chamativas. Não seria o seu caso, assume, embora lá tenha ido algumas vezes, mas o encerramento de “mais uma loja histórica” deixa-a entristecida. “Isto faz-me doer a alma, parece que todas estes estabelecimentos que davam a identidade da nossa cidade estão a fechar portas. Esta foi à vida, como outras também irão, lamentavelmente”, desabafa a funcionária pública, enquanto acaba de comer um gelado. O travo amargo, esse, vai ficar, garante. “A Câmara de Lisboa devia ter poderes para impedir uma coisa destas, para salvar isto. Não sei como, mas devia. Daqui a uns anos, o que vamos ter aqui serão lojas de bugigangas e de marcas internacionais, sem nada que as distinga. As coisas vão-se perdendo. O que prevalece é a lei do cifrão, cada vez mais”, diz, antes de, a passo lento, continuar a descer a Rua do Carmo.

É mais uma que fecha na Baixa: Livraria Aillaud & Lellos desmancha a casa

Histórica livraria da rua do Carmo, no Chiado, fechou as portas no virar do ano por causa do aumento “brutal” da renda que o proprietário não está disposto a comportar. E nem a distinção no programa “Lojas com História” da câmara de Lisboa impediu que as estantes se esvaziassem definitivamente.

CRISTIANA FARIA MOREIRA 9 de Janeiro de 2018

Um cartaz improvisado onde se lê “Encerrado” denuncia o fim da histórica Livraria Aillaud & Lellos na rua do Carmo, em Lisboa. O jornal online O Corvo deu conta do fecho da casa na segunda-feira e a confirmação chegou ao PÚBLICO assim que batemos à porta da livraria. Já de portas fechadas, Teresa, Isabel e Conceição, que ali trabalham há décadas, estão a desmanchar um espaço que ajudaram a construir.

É mais uma casa quase centenária, que ali abriu em 1931 pela mão de duas famílias livreiras - os Lello e os Aillaud -, a fechar de vez as portas por conta do aumento “brutal” da renda, imposto pelo senhorio, e que o proprietário da livraria não está disposto a pagar.

São "muitas, muitas mesmo” as pessoas que, por estes dias, lhes têm batido à porta, diz Teresa Alemão, 61 anos, dos quais 25 foram dedicados aquela casa. "Temos clientes que quando souberam saíram daqui com os olhos rasos de água", conta.

A decisão de encerrar a livraria foi-lhes comunicada no início de Novembro pela família Lello, que detém também a célebre livraria homónima no Porto, junto à Torre dos Clérigos, por causa do “aumento brutal” da renda, imposto pelo senhorio, para aquele espaço. O PÚBLICO entrou em contacto com a Lello Editores, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.

Foram dizendo aos clientes mais antigos, que se tornaram amigos, de que iam fechar. "As pessoas batem à porta e dizem: 'Tenho muita pena'", partilha Isabel Ferreira, 62 anos, que ali está há 44.

O último dia de abertura ao público foi a 30 de Dezembro, mas os últimos dias têm sido ocupados a esvaziar as estantes da livraria. Sem possibilidade de os transferir para outro lugar, os livros vão sendo encaixotados, grande parte para serem devolvidos às editoras. No dia 15, contam ter a casa vazia para com “muita mágoa e muita tristeza”, a entregarem ao senhorio.

Conceição Fernandes, 57 anos, chega a meio da conversa porque esteve a contar a uns fregueses que a livraria ia mesmo fechar. "Agora que estamos a chegar ao fim, está a ser muito doloroso. Começamos a tomar isto como se fosse a nossa casa", diz a funcionária que ali trabalhou durante 27 anos.

As dificuldades pelas quais o mercado livreiro atravessa não deixam de ser tema de conversa. As grandes cadeias e a Internet ameaçam as casas mais pequenas. O mês de Dezembro, por exemplo, aponta Teresa, “foi um fracasso, ao contrário dos outros anos”.

Os últimos anos não têm sido fáceis para o sector livreiro em Portugal. Em Fevereiro do ano passado, o PÚBLICO dava conta do encerramento da Livraria Rodrigues, situada entre as ruas do Ouro e dos Sapateiros. Já em 2012, a Livraria Portugal, aberta em 1941, fechou as portas para dar lugar a uma loja de brindes também na rua do Carmo. Assim como a Livraria Barateira, desde 1914 na rua Nova da Trindade, que também fechou nesse ano. No Rossio, a livraria do Diário de Notícias (de 1938) foi substituída, em 2013, por uma loja de tecidos.

Mas a crise chega a outros sectores, apontam as funcionárias da livraria, referindo o desaparecimento de mais duas lojas antigas na rua, só nos últimos três meses: a Sapataria Hélio e a Camisaria Trezentos.

Uma “Loja com História”
A rua do Carmo é testemunha de muito da história do comércio de Lisboa. A agora de portas fechadas Livraria Aillaud & Lellos está frente a frente com a Luvaria Ulisses e a Joalharia do Carmo. Estas três fazem parte, aliás, do programa “Lojas com História”, promovido pela câmara de Lisboa, para “preservar e salvaguardar os estabelecimentos [de comércio tradicional] e o seu património material, histórico e cultural”.
Mas nem essa distinção “safou" a Aillaud & Lellos. "A câmara disse-nos que não podia fazer nada porque o senhorio queria um aumento de renda e não podiam intervir", explica Isabel.

Questionada pelo PÚBLICO, a câmara de Lisboa referiu que quando teve conhecimento do fecho de portas da Livraria Aillaud & Lellos, “já existia acordo entre o senhorio e o inquilino para o encerramento do espaço no final do ano”. Ainda assim, acrescentou a autarquia, “o grupo de trabalho das Lojas com História, reuniu, por um lado, com a entidade que explorava a Livraria, e com o senhorio, tentando sensibilizá-lo para a perda da distinção da loja caso não se preservassem os elementos que deram origem à distinção”.

Sem o fausto da livraria do Porto, a Aillaud & Lellos organiza-se em torno de uma coluna central, que é também uma estante, e um friso que emoldura a quase totalidade da loja. Mas é a fachada, trabalhada em mármore, por António José Ávila do Amaral, colaborador de Cassiano Branco, para que se assemelhasse à lombada dos livros, que dá nas vistas. Nas colunas que ladeiam a porta de entrada, além dos motivos que aludem aos livros, estão gravados nomes de autores portugueses, como Camilo Castelo Branco ou Eça de Queiroz.

A par dos clássicos da literatura portuguesa, a livraria detinha obras de editoras “que noutro lado eram difíceis de encontrar”, como a Colibri ou a Antígona, aponta Isabel.

"Depois tínhamos sempre muitas promoções, livros muito em conta que não se arranjavam em mais lado nenhum", completa Teresa. A clientela já tinha alguma idade, mas, no Verão, a livraria animava quando chegavam os estrangeiros.

Já chegaram a ser sete funcionários, sobraram “as três da vida airada”. Que, entre caixotes e estantes vazias, lembram os clientes mais inusitados que por ali entraram, como um "senhor alto, todo bem composto" que chegava à estante central e rasgava sempre uma folha de um livro. "O senhor fazia sempre aquilo, até que um dia descobrimos. Acho que o senhor tinha problemas de cabeça e um dia veio-nos pedir desculpa porque não sabia porque fazia aquilo”, recorda Teresa.


Serão obrigadas agora a ir para o desemprego, depois para a reforma. Houvesse capital disponível e ainda fundavam as três uma nova livraria, atira Conceição. “Se saísse o Euromilhões, pode crer que abríamos”.

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