sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Turismo obriga Café Luso, a casa de fados mais antiga de Lisboa, a reinventar-se



Fado “Gourmet”? “Evolução” ou simples perda de Autenticidade e de Identidade sobre a pressão do Turismo de massas? Quem vai representar as Marchas Populares do Futuro?
Quem vai representar o Fado e a Lisboa do Futuro? Iremos chegar ao ponto de contractar actores para representar o “Povo”?
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Turismo obriga Café Luso, a casa de fados mais antiga de Lisboa, a reinventar-se 

POR SAMUEL ALEMÃO • 29 DEZEMBRO, 2017 •

Acabado de completar 90 anos, o Café Luso tem vindo a reinventar-se, muito por culpa do aumento do turismo e da elevação do fado a Património da Humanidade. A casa onde se escuta a canção de Lisboa, e na qual foi gravado um dos discos mais populares de Amália Rodrigues, tem, desde 2015, um elenco mais jovem e uma oferta gastronómica modernizada. A plateia confirma os sinais dos tempos: espectadores de várias partes do mundo, de todas as idades, de máquinas fotográficas e telemóveis em punho para registarem as actuações. Muitas vezes, não se consegue controlar o burburinho e pede-se silêncio para ouvir os intérpretes. Os pratos gourmet acompanham a música. Muitos vêm só para ouvir Celeste Rodrigues, irmã de Amália Rodrigues, a cantar aos 94 anos. João Pedro Ferreira Borges, sócio-gerente do Café Luso, admite que “o fenómeno massivo do turismo criou alguma pressão e dependência no negócio”. Nas redes sociais, há quem acuse o Café Luso de estar a esquecer os portugueses, sendo a principal queixa os preços praticados.

 Texto: Sofia Cristino                                  Fotografias: Hugo David

 “Muitas vezes, não percebemos o que dizem, mas emocionamo-nos sempre”, comenta Tarx Marina, de 31 anos, enquanto aplaude Cristiano de Sousa, fadista no Café Luso há 18 anos. Tarx é colombiana e está de férias em Portugal, pela segunda vez, com a mãe, Luz Marina, de 60 anos. “O ano passado, viemos aqui ouvir fado e ficamos com muita vontade de voltar. É uma forma de exprimir os sentimentos muito bonita. O fado é o coração de Portugal”, considera Luz Marina. É no cimo da Rua Norte, no interior do Bairro Alto, que encontramos a casa de fado mais antiga de Lisboa, o Café Luso. É difícil entrar. As filas são grandes e há muitas pessoas à espera para confirmar as reversas. As actuações decorrem no centro da sala, que conserva uma traça intemporal.

 Os fadistas entram de soslaio, quase sem se fazerem notar. Cumprimentam o público com o olhar, uma vénia e um sorriso. Olham a plateia nos olhos. O xaile preto, pousado nas costas da primeira intérprete da noite, desperta a curiosidade de muitos que a vêm pela primeira vez. A luz baixa. Ouvem-se os primeiros acordes na guitarra portuguesa. O contrabaixo também já está a postos para acompanhar a artista.

Os tectos abobadados e as arcadas de pedra possibilitam uma melhor qualidade do som, que só é quebrada pelos comentários da assistência. Nas antigas adegas e cavalariças do palácio setecentista Brito Freire, sussurram-se elogios em francês, inglês, japonês, sueco, grego e espanhol, o idioma predominante. Por vezes, os empregados e, mesmo, os próprios artistas, têm de pedir silêncio. Vai-se cantar o fado.

 “Hoje, estiveram calados, mas, muitas vezes, não estão. Há noites muitos especiais, com menos gente. Quando acontecem, ficamos com vontade de cantar mais. Quando se cria um certo ambiente de intimismo, acontecem noites fantásticas de fado”, explica Elsa Laboreiro, directora artística do Café Luso e fadista há 35 anos – com um interregno pelo meio – naquela casa.

 O Café Luso completou 90 anos a 27 de novembro, no mesmo dia em que se celebrou o sexto aniversário da elevação do fado a Património Imaterial da Humanidade, pela UNESCO. Por lá passaram grandes nomes do fado, como Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues, Berta Cardoso, Cidália Moreira, Argentina Santos, Joaquim Campos, Beatriz Conceição, Fortunato Coimbra, entre outros. Na que ficaria celebrizada por “Catedral do Fado”, por ser bastante selectiva na escolha dos artistas, Amália Rodrigues gravou um dos seus discos mais conhecidos, Alfredo Marceneiro foi nomeado “Rei do Fado” e António Rocha, com 79 anos, “Rei do Fado Menor”. Hoje, os intérpretes têm novos rostos e a plateia é composta por pessoas de todo o mundo.

 Aos sábados, as sessões de fado decorrem entre as 20h e as 2h, com intervalos de quinze minutos para os espectadores retomarem o jantar ou a conversa. Há quem venha de propósito para ouvir a música popular portuguesa ou só mesmo para ver a actuação da fadista Celeste Rodrigues, irmã de Amália Rodrigues, que continua a cantar aos 94 anos.

Quando O Corvo lá esteve, foi a primeira a cantar, pelas 22h. Interpretou três fados conhecidos, destacando-se o emblemático “É noite na Mouraria”. Foi aplaudida com “bravos”, em sotaque espanhol. Finda a sua actuação, e enquanto espera pela ceia, numa mesa redonda à saída do Café Luso, vai comentando a prestação dos colegas. “Está a cantar muito bem, não está?”, pergunta Celeste Rodrigues, enquanto trauteia a letra da música que Cristiano de Sousa interpreta. “Ali era a bilheteira, havia pessoas que vinham quase todos os dias ao fado, era muito diferente”, vai contando, enquanto aponta para a entrada do estabelecimento, onde agora está um piano.

Um casal de suecos fita a fadista, expectante, aguardando a melhor altura para a interpelar. “Desculpe incomodar, mas só queríamos mesmo agradecer pelo momento musical, foi mesmo muito bom”, elogiam. Celeste Rodrigues agradece e pergunta de onde são. Fala inglês com a mesma fluência com que fala a língua materna. “Somos suecos”, respondem. “Da Suécia? Que bom! Gosto muito, já lá fui”, diz, enquanto se posiciona para tirar uma fotografia com o casal que visita pela primeira vez Portugal. Ainda não tirou o sorriso nem a pose, quando é novamente abordada. “Foi um verdadeiro prazer ouvi-la, obrigada”, agradece uma mulher natural de Múrcia, em Espanha, que aproveita a oportunidade para perguntar o que significa o fado para Celeste Rodrigues.

 “Não se pode explicar o que é o fado, o fado sente-se. É muito misterioso, tem tudo o que há na vida, coisas muito profundas. Não há tristeza no fado, há melancolia e estados de alma. O fado requer uma força interior tão grande para ser cantado, que faz arrepiar e chorar pessoas que não percebem nada do que estamos a dizer”, define a fadista.

Muitos foram lá só para a ver, mas quando O Corvo a questiona sobre como é cantar com 94 anos, num lugar que lhe traz muitas memórias e onde continua a ser tão procurada, é modesta nas observações. “É maravilhoso. Sinto que tenho sorte por ainda ter um contrato e o público aceitar-me. Se não me aceitassem, eu não poderia cantar, o que me dava muita pena. Também ainda tenho um bocadinho de voz, o que é óptimo, porque, com a minha idade, já ninguém canta. 72 anos de fado é muito tempo. De repente, porque uma pessoa tem mais idade, tem de deixar de cantar? Não é justo”, explica, entre risos.

 Celeste Rodrigues considera que, com os anos, vai-se perdendo muita coisa, mas, acredita, “ganha-se mais do que se perde”. “Perdemos a voz, mas ganhamos outras coisas, como a emoção. Percebemos melhor a vida. A voz é bonita quando somos novas, mas não tem a mesma força interior de quando somos mais velhas. Uma miúda de 14 anos ainda não sabe o que é o amor, ainda não sofreu na vida para perceber o que as palavras querem dizer”, explica, enquanto bate palmas e enaltece mais uma interpretação. “Muito bem cantado. É tão bom cantar…desabafa-se”, diz, pensativa.

 O Café Luso nasceu na Avenida da Liberdade, nos finais da década 20 do século passado, onde esteve sediado até 1937. Ficou conhecido por acolher concursos de talentos e divulgar alguns dos melhores artistas da época. Esteve, temporariamente, instalado na Rua de Santa Marta, com o nome de A Esplanada Luso Artístico, reabrindo como uma casa de referência em 1941, em pleno coração do Bairro Alto. Às sextas-feiras à noite, praticavam-se preços especiais para se ouvir Amália Rodrigues, uma presença anunciada como “exclusiva”. Celeste Rodrigues lembra-se bem dessas noites.

 “Às vezes, as pessoas diziam: ‘não é como a irmã’. Nem tinha de ser. Nunca a imitei e ela admirava muito a minha forma de cantar. Quem nos associa não está bom da cabeça, éramos muito diferentes. A minha irmã era um caso único, daquelas coisas que aparecem uma vez na vida. Fazia o que queria da voz, tinha uma sensibilidade rara. Era sincera e autêntica”, recorda a irmã de Amália Rodrigues.

 Elsa Laboreiro também viveu os tempos áureos daquele lugar de culto do fado. Estreou-se como fadista no Café Luso aos 19 anos. Hoje, com 56, já conheceu centenas de artistas e clientes de todas as partes do mundo. “O Café Luso tem imenso peso na história do fado. É, de certeza absoluta, a casa de fados que tem mais peso. Temos clientes de países diversos que nos vêm ver quase todos os anos. Naquela altura, poucas pessoas podiam vir, era mais difícil gastar esse dinheiro. Está tudo diferente, a sociedade e a cultura, e a forma como as pessoas podem abordar e aceder à cultura”, explica.

 “Acha que a essência do fado se perdeu?”, questiona O Corvo. “A essência do fado não se perdeu, mas já não existem aquelas vozes de antigamente. Já não há uma data de artistas que foram marcantes para a história do fado. Eu tive a sorte de pertencer a uma geração em que conheci muitos deles, como a Amália Rodrigues, em 1987. E, há 14 anos, tenho tido a alegria de cantar com a sua irmã”, lembra.

 “Estamos a viver uma evolução, que é natural que se dê, mas gostava mais das coisas como eram antes. Tinham um misticismo diferente, havia uma reverência e um rigor diferente. Hoje, ainda há espetáculos interessantes, mas são menos. Temos fadistas fantásticos porque existe um núcleo de pessoas que respeitam imenso o tradicionalismo do fado e são rigorosas em manter coisas muito importantes, que não se podem perder. Mas a Amália foi uma era que ali ficou, sem dúvida”, lamenta, ainda.

 Café Luso reinventado

Em 1970, o Café Luso passou a ser gerido por uma sociedade pertencente ao pai de um dos actuais proprietários, Fernando Ferreira Borges. Em 1992, o grupo Fado and Food Group – que detém, também, as casas de fado Adega Machado e a Timpanas – passa para as mãos de João Ferreira Borges e de dois sócios-gerentes, Armando Fernandes e João Fevereiro. Nos últimos anos, e acompanhando o exponencial crescimento turístico, os proprietários do Café Luso viram-se obrigados a apostar mais na captação de turistas. Depois de um período de redefinição, o estabelecimento reabriu, em 2015, com um elenco residente rejuvenescido. João Ferreira Borges percebeu que a sobrevivência da casa de fados teria de passar, ainda, pela modernização da oferta gastronómica. A acompanhar os fados, além das refeições tradicionais, há pratos gourmet recriados a partir de outros pratos.

“O fenómeno massivo do turismo criou alguma pressão e dependência no negócio, que levou inclusive a adicionar, durante anos, a oferta de um espectáculo de folclore, reunindo assim duas ofertas do universo musical popular nacional”, explica João Ferreira Borges, justificando assim o que considera ser o abrandamento da “evolução artística”, uma vez que tal tornou o repertório mais repetitivo. Na década de 90, por decisão empresarial, tal começou a ser corrigido. “A esse estímulo não foi alheio o sangue criador das mais recentes gerações no fado”, admite o empresário. “Consciente dessas ameaças, o Café Luso recuperou assim a sua função formativa, com elencos intergeracionais, a sua atractividade artística, e nunca chegou ao ponto de se cristalizar, continuando a ser referência principal no cenário lisboeta do Fado”, considera João Ferreira Borges.

 Há, contudo, uma meta por cumprir: trazer os portugueses de volta à “Catedral do Fado”. Em depoimento escrito a O Corvo, o gerente do Café Luso garante que “os portugueses são e serão os primeiros destinatários do estabelecimento”. “São essenciais para conferir o ambiente que procuramos recuperar, preservar e fomentar no que aos escutantes respeita, para que o fado sempre ‘aconteça’. Damos a possibilidade de o frequentar com menus mais económicos, petiscos, ou apenas bebidas”, explica. E, apesar das dificuldades que as casas de fado têm vindo a passar, João Ferreira Borges assegura que nunca deixaram de receber os clientes habituais, tendo alguns sempre uma garrafa reservada.

“Temos um perfil dos clientes mais assíduos, aqueles que viveram outros momentos áureos do fado, que conviveram com vultos que se tornaram mitos do fado: Amália Rodrigues, Tony de Matos, Alfredo Marceneiro, e muitos outros, ligados a esta casa. Muitos menos que antigamente, mas ainda temos famílias portuguesas, e até estrangeiras, que nos visitam periodicamente. A elevação [a Património Imaterial da Humanidade ] do fado aumentou a curiosidade mundial sobre este género musical exclusivo e, se o Café Luso já se perfilava ‘embaixador do fado´, hoje em dia, mercê da sua história, é maior a sua autoridade em matéria do fado, e da confiança que oferece a quem procura o que se pode considerar autenticado pela sua própria história”, explica.

 Nas plataformas digitais TripAdvisor e Zomato, que dão voz às experiências dos consumidores nos mais diversos estabelecimentos de hotelarias, há, contudo, quem não concorde que o Café Luso esteja focado em reconquistar os portugueses. Existe quem se queixe dos preços praticados e do espaço estar feito apenas a pensar nos turistas.

 “Encontramos lá vinhos, vendidos no mercado a preços de 8/10€, com uma inflação de 40/50€. É exagerado! Porém, quando lá estamos sentados, olhamos em volta e percebemos. Não estava rodeado de estrangeiros, os estrangeiros era eu e a minha mulher. Nada contra, é claramente o público-alvo do restaurante, embora eles neguem isso nas várias respostas que deram por aqui, pois dizem que querem restaurar a alma do fado. Certo, mas não para os portugueses. Não há mal nisso, é um target que funciona sem dúvida”, lê-se num comentário de um cliente, Ivo Rocha, no TripAdvisor. “O barulho torna-se, por vezes, ensurdecedor, ao ponto de os próprios fadistas terem de pedir ao público respeito. A parte positiva: o restaurante tem um ambiente intimista”, refere.

Basta fazer uma breve pesquisa na internet para perceber que a opinião é unânime. No Zomato encontram-se comentários semelhantes. “Restaurante de fado essencialmente para turistas. Comida boa, mas sem ligação ao preço praticado. Apenas se percebe os preços praticados pelo sítio onde se localiza e pelo fado”, repara Rúben Espanhol. “Comida de boa qualidade e bem apresentada, mas em pouca quantidade. O custo médio indicado não corresponde à realidade. Uma refeição normal nunca ficará a menos de 120 euros para duas pessoas”, acrescenta Hugo Gaudêncio. Todos concordam, porém, com a qualidade das actuações de fado. “Recomendo uma visita para assistir a um bom espectáculo de fado numa atmosfera muito boa. Serviço de mesa aceitável”, comenta Hugo Gaudêncio.

 O fado começou por ser cantado em tabernas e cafés e, espontaneamente, nas ruas, em momentos de convívio e lazer. Falava de saudade e nostalgia, de amores e desamores, mas, sobretudo, do dia-a-dia dos lisboetas do século XIX. As casas de fado surgem mais tarde, a partir da segunda década do século XX, quando já se encontravam admiradores do género em a todas as camadas sociais. Há não muitos anos atrás, segundo a irmã de Amália Rodrigues, “as casas de fado estavam completamente cheias, haviam tertúlias e os estudantes juntavam-se para declamar poesia”. Mas tudo isso mudou. “Hoje em dia, não há a mesma disponibilidade que existia, porque os artistas estão nos teatros e os estudantes estão nas universidades. Antigamente, também era mais acessível”, explica Celeste Rodrigues.

 Hoje, muitos jovens cantores querem aprender o género musical que emociona pessoas de todas as partes do mundo. Mas Elsa Laboreiro relembra que é preciso muito mais do que “uma grande voz” para o interpretar. “Conheço muitos dos novos artistas e alguns são realmente muito bons, mas há um ponto em que eu bato o pé. Não concordo com tudo aquilo que se faz, que desvirtua o que é basilar no fado. Nem todos têm conhecimento suficiente de fado ou de fadistas e das vozes do antigamente, e alguns pensam que basta abrir a boca que já são fadistas”, observa.

 “O que a preocupa quanto pensa no futuro do fado?”, questiona O Corvo. “Preocupam-me muitas coisas, mas outras também me deixam muita esperança, por isso, eu vou pôr a minha esperança naqueles artistas em que acredito e que são muitos bons intérpretes. Espero que consigam fazer prevalecer aquilo que importa e acho que conseguem”, acredita.

 Elsa Laboreiro alerta, ainda, para o facto de existirem cada vez menos casas de fado e “muita concorrência desleal”. “Houve um aproveitamento não só da classificação do Fado a Património da Humanidade como do aumento dos turistas. Há muitos estabelecimentos a que chamam casas de fado mas não são mais do que restaurantes onde se canta fado. Corre-se o risco de desqualificar o fado com os espaços que têm surgido. É um desrespeito pelo fado o que se faz em alguns sítios”, denuncia a directora artística do Café Luso.

 João Pedro Ferreira Borges concorda que existe “uma concorrência desleal, face a quem cumpre integralmente as suas obrigações legais”. “Existem muitos fenómenos de aproveitamento, esvaziados daquilo que confere autenticidade a um ambiente de fado, que também é composto de rituais. E a maior parte desses lugares nada têm a ver com os preceitos de uma casa de fados”, explica.


 “O fado poderá estar a ser banalizado?”, questiona O Corvo. “Enquanto durar esse fenómeno de aproveitamento, sim”, considera, mas com uma ressalva. “Estará a salvo, enquanto os seus principais agentes, designadamente as casas de fado históricas, defenderem o seu conceito original que o contextualiza, o profissionaliza, o preserva, o faz evoluir”, conclui.

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