segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Moradores do Bairro Alto queixam-se que já não dormem nem de noite nem de dia


Moradores do Bairro Alto queixam-se que já não dormem nem de noite nem de dia
POR O CORVO • 30 OUTUBRO, 2017 •

Conhecido pela vida nocturna, o Bairro Alto passou também a ser local de romaria turística durante o dia. Durante as 24 horas, há gente a fazer barulho nas ruas, queixam-se os residentes. Uma situação que, acompanhada do crescimento do alojamento local, perturba o descanso dos moradores e descaracteriza o bairro. No período diurno acontece um pouco de tudo: encontram-se pessoas alcoolizadas, indivíduos em práticas sexuais, vandalismo de carros e distribuição de droga. Os moradores estão preocupados com o rumo dos acontecimentos. Alguns queixam-se ainda da solidão, do excesso de turistas e da falta de higiene urbana. O comércio local teme estar no fim dos seus dias. A presidente da Junta da Misericórdia reconhece que há problemas, mas diz que têm sido tomadas medidas para eliminá-los, melhorando a qualidade de vida dos moradores. Ainda assim, admite Carla Madeira (PS), o predomínio do alojamento local é o problema com os “contornos mais gritantes”.

 Texto: Sofia Cristino

 “Estou a usar Ajax para limpar as escadas, a ver se, desta vez, a sujidade sai!”, diz Maria Leandro, de 71 anos, moradora no Bairro Alto há 44 anos, enquanto limpa a entrada da sua casa. “Estou a limpar o que me sujaram durante a noite”, explica a O Corvo. Quem percorre a Rua do Diário de Notícias a um dia de semana depara-se, inicialmente, com um silêncio pesado. Quietude que, por vezes, é interrompida pelos tróleis dos turistas, uma ou outra pessoa alcoolizada a falar mais alto e, em dias de jogos de futebol, por grupos de amigos a cantarolar os hinos dos seus clubes. Ouve-se um ou outro murmúrio dos, já escassos, moradores, nas ruas mais desertas, que contrasta com as gargalhadas entusiastas dos turistas nos novos restaurantes que, entretanto, abriram. Durante o dia, os empregados dos bares limpam os espaços nocturnos, enquanto que os comerciantes esperam os clientes que teimam em aparecer.

 O Bairro Alto ganha vida à noite, mas o ruído e as situações mais insólitas começam a acontecer durante o dia. O problema do ruído, que perturba o descanso dos moradores, já não é novidade, mas, com o aumento do número de bares e outros estabelecimentos de restauração, nos últimos cinco anos, esta situação tem-se vindo a agravar. “O barulho começa cedo, mas das 2h às 5h da manhã é que não se consegue mesmo dormir. Durmo à tarde, quando consigo. Durante o dia, os fornecedores dos barris de cerveja também fazem muito barulho, falam muito alto. Hoje, por exemplo, estão cá e não estou a conseguir descansar, dedico-me às limpezas”, continua a contar a moradora, reformada e doente oncológica.

 O barulho sentido durante a noite – e, agora, também durante o dia – deixou de ser, contudo, a queixa principal de quem aqui vive. Lurdes Rodrigues, de 68 anos, comerciante e moradora na Rua da Atalaia, confessa que já viu práticas sexuais em plena luz do dia. “Este bairro está uma vergonha. Já vi de tudo. Às 8h da manhã, vi dois homens a fazerem sexo mesmo na minha porta”, afirma. “Liguei para a PSP e disseram-me que eram estrangeiros e que, por isso, não podiam fazer nada. Não sei onde isto vai parar”, lamenta.

Maria Leandro, partilha uma história semelhante. “Até já fizeram sexo aqui à minha porta, de dia, eram dois jovens muito novinhos. Já para não falar dos bêbados, que andam por aí a qualquer hora, já não temos sossego há muito tempo”, garante. A ex-funcionária do fisco confessa que, se pudesse sair do Bairro Alto, não pensava duas vezes. “Fui funcionária pública das Finanças toda a vida. Trabalhei tanto para agora viver neste cubículo, mas é assim. Só podia sair se ganhasse o Euromilhões”, desabafa, entre risos. As paredes da sua casa estão todas pintadas, mas Maria Leandro já nem quer saber. “Enquanto pintam as paredes, não fazem outras coisas”, acrescenta.

 Lurdes Rodrigues, nascida e criada naquela zona da cidade, diz que é com tristeza que olha para a deterioração do bairro histórico. “O Bairro Alto morreu, é só álcool e uma música que nem é música, é sempre a mesma batida. Os turistas só compram fruta e água, não acrescentam nada ao bairro. Ás vezes, apalpam as maçãs todas e não levam nenhuma. Não percebo porque estão a ocupar isto tudo. Alugam casas aos turistas, que são casas de merda, num bairro que já nem tem tradição”, queixa-se. Os clientes da sua acolhedora mercearia são os clientes habituais. Na rua onde vive, ainda tem dois vizinhos conhecidos e diz sentir-se muito sozinha. “Nos últimos cinco anos, isto piorou muito. Sinto falta do convívio. Durante o dia, não há vida e o turismo não nos ajuda. A rua está toda suja, cheia de copos e garrafas. Cheira a álcool e xixi. Temos de parar com esta macacada”, diz, indignada.

Nanda Rangi, de 44 anos, concorda com Lurdes Rodrigues num aspecto. “Os turistas só vêm aqui comprar água e fruta. Às vezes, estou aqui horas e horas, sem ninguém aparecer, isto está muito mau para o comércio. Qualquer dia, é só hotéis e hostels”, diz a funcionária de uma drogaria localizada mesmo em frente à casa de Maria Leandro. A comerciante mora duas ruas acima e vê com preocupação o rumo que o bairro típico está a levar. “Depois de almoço é só grupos de bêbados. Durante o dia, já não há moradores, o bairro mudou muito. Era um bairro de convívio, as pessoas cumprimentavam-se, mal saíamos de casa ouvíamos os bons dias, agora não se vê ninguém”, comenta.

Raúl Xisto, de 84 anos, está sentado num banco na drogaria de Nanda Rangi. Uma das formas que encontrou de ir passando o tempo, pois já não conhece praticamente ninguém. Diz que é o “solitário” do bairro, porque anda sempre sozinho. “Os andares do meu prédio estão alugados a turistas, são rapazes novos. Já só tenho um vizinho antigo. Uns morreram e outros foram forçados a sair. Havia uma carreira que ia até ao Terreiro do Paço e sempre nos tirava daqui, mas acabaram com ela. Estamos em fim de vida e devíamos ter um benefício por isso, mas estamos tramados”, lamenta. Quando os prédios começaram a ser alugados a turistas, a sua ex-mulher foi uma das moradoras que foi alvo de despejo. “Ainda tentei arranjar um rés-do-chão para a minha ex-mulher, mas as rendas estão muito altas e ela acabou por ir para um lar”, explica.

 O octogenário queixa-se, ainda, do barulho e do “cheiro insuportável” que se sente em algumas ruas. “As ruas só são lavadas à quarta-feira e sexta-feira e deviam ser lavadas todos os dias. Esta calçada também é um perigo para nós, pessoas com mais idade, andarmos”, comenta, ainda.

 Os moradores antigos mais jovens do bairro estão todos na casa dos 40 anos. Jorge Guerreiro é um desses exemplos. Morou na Rua do Norte dos 5 aos 25 anos. Concluída a universidade, rumou até ao Algarve, onde viveu 15 anos, tendo regressado a Lisboa no passado mês de Agosto por motivos profissionais. Desde então, diz ainda não ter conseguido um momento de descanso. “A noite é muito barulhenta, isto nunca pára. É todos os dias, durante todo o ano, e parece-me que a tendência é aumentar. Do que me queixo mesmo é dos alcoólicos, que ficam até ás 5h da manhã a cantar na rua num total desrespeito pelos moradores. Na Suíça, uma pessoa que esteja, depois da meia-noite, a gritar leva uma multa”, contrasta. “Já ouvi estrangeiros e turistas a dizerem que não querem cá voltar, quando vêem pessoas a vender droga, por exemplo. Há um conjunto de coisas a acontecer que estragam a cidade. Já me vandalizaram o carro várias vezes também”, acrescenta.

 Tal como outros moradores, Jorge Guerreiro também não é a favor das horas a que passam os camiões da recolha do lixo. “A recolha do lixo é feita de madrugada, muitas vezes à meia-noite e à 1h da manhã e, depois, novamente às 6h e às 8h da manhã. No domingo, por exemplo, uma pessoa não consegue dormir até mais tarde. Mas, pior que o lixo, é mesmo o vidrão, fazem muito barulho na recolha”, comenta, ainda.

 Rui Seixas, empregado do estabelecimento comercial Mercado do Bairro, apesar de só estar a trabalhar há cinco anos na zona, diz que já viu um pouco de tudo durante o dia e considera que há situações excessivas. “Às vezes, as pessoas perdem a noção, sobem para cima dos carros, deixam lá os copos, enfim, não se compreende”, comenta. Salienta, porém, que tais cenas são “acontecimentos esporádicos” e que os turistas, no seu caso, sempre ajudam o negócio.

 Ao contrário da maioria dos moradores, Maria Leandro e Jorge Guerreiro não consideram a vinda dos turistas um problema para o bairro. “O turismo é bom para Portugal. Às vezes, sentam-se nas minhas escadas para conversar, mas não me incomodam. Eles vêm para ver o bairro, não vêm para os bares”, explica a moradora. Jorge Guerreiro concorda. “Os negócios que nasceram aqui não me perturbam, até acho bem que surjam, desde que haja critérios e fiscalização do espaço público. No meu prédio, há alojamento local e os turistas até têm uma placa a dizer para ninguém tocar depois da meia-noite. São pacíficos”, explica.

 A presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, Carla Madeira (PS), vê como positiva a vinda dos turistas a “um dos bairros mais bonitos e históricos de Lisboa, com cores fortes e beleza arquitectónica”. Mas reconhece que o aumento do alojamento local é preocupante. “Não há nada mais cruel do que obrigar uma família a abandonar o seu lar. Temos vindo a fazer uso de todos os meios que possuímos para poder, se não travar, pelo menos mitigar este grave problema. De todos os problemas existentes na freguesia, este é o que toma contornos mais gritantes”, considera, em depoimento escrito a O Corvo. “É injusto e desumano”, qualifica.

 Luís Paisana, presidente da Associação de Moradores da Freguesia da Misericórdia (AMBA), em declarações a O Corvo, explica que o mau ambiente ali sentido, neste momento, está relacionado com dois fenómenos com grande relevância. O primeiro é o impacto que o ruído e o consumo de álcool continuam a ter na vida dos habitantes. “O Bairro Alto continua a ser um ponto de encontro de muitos turistas e jovens. O álcool é barato e as pessoas dormem em hostels, muitos deles clandestinos. Esta deterioração já tem vindo a acontecer há algum tempo, mas, nos últimos cinco anos, assistiu-se a um aceleramento deste processo, porque Lisboa está na moda, é segura e tem preços baratos”, explica.

 “O mau ambiente convergiu para a rua e tem vindo a agravar-se. A fiscalização dos bares, que agora fecham mais cedo, veio trazer problemas para as ruas”, completa. Jorge Guerreiro partilha a mesma visão. “Isto tem vindo a piorar, porque as pessoas gostam de modas. O Bairro Alto sempre esteve na moda, mas agora está mais e começam a vir para aqui pessoas de classes sociais mais baixas também, que antes não vinham e isso sentiu-se. O problema não é das pessoas que moram cá, é de quem vem de fora”, considera.

A segunda questão, não menos preocupante para Luís Paisana, é a “destruição do património”. “O Bairro Alto perdeu 10% da população, nos últimos dois anos, por causa do alojamento local, o que trouxe consequências, como a perda do sentimento de vizinhança e solidariedade que existia entre os moradores. Se precisarem da ajuda de um vizinho, não têm. O bairro vai ficando descaracterizado e muitos estabelecimentos de comércio tradicional vão ser substituídos”, assegura.

 A presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia tem uma perspectiva diferente quanto ao comércio tradicional. “O Mercado do Bairro Alto foi revitalizado há pouco tempo, por forma a receber ofícios tradicionais e, assim, aumentar a frequência diurna no local, ao mesmo tempo que protegemos os ofícios em vias de extinção na nossa cidade, como marceneiros, sapateiros, entre muitos outros”, assegura Carla Madeira.

 A autarca reeleita reconhece, contudo, que “ainda muito pode ser feito” para colmatar a deterioração do Bairro Alto. “Temos vindo a lutar por uma constante melhoria das condições de habitabilidade e de coexistência pacífica entre as funções comerciais e residenciais do Bairro Alto. A introdução do novo regulamento dos horários de funcionamento dos estabelecimentos, em vigor há sete meses, tem vindo a trazer melhorias visíveis nos comportamentos de muitos comerciantes”, explica Carla Madeira, que também se tem debatido por esta questão na Assembleia Municipal de Lisboa (AML).

 No que diz respeito à melhoria da Higiene Urbana, uma das principais reinvindicações dos moradores, Carla Madeira lembra que a Junta de Freguesia da Misericórdia colocou, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa (CML), contentores fixos na zona condicionada no Bairro Alto, para que o lixo não seja depositado na via pública. Alguns habitantes do bairro histórico, todavia, consideram esta medida insuficiente.

 Carla Madeira admite alguns problemas, que justificam as campanhas de sensibilização já realizadas. “É normal que as principais alterações não sejam visíveis de forma imediata, visto que as alterações a comportamentos há muitos anos instituídos não se realizam em meio ano. No entanto, estou confiante de que, com o nosso trabalho e o apoio da população das Associações de Moradores e Comerciantes, conseguiremos chegar a bom porto”, diz.

 Luís Paisana acredita que o projecto da AMBA, Um Bom Vizinho – aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), ao abrigo do programa BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) para 2017 – vai contribuir para, “pelo menos, diminuir” a solidão e a deterioração deste bairro situado no coração de Lisboa. Luís Paisana relembra, ainda, que a população sénior da Freguesia da Misericórdia representa quase 30% da população.

 A presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia garante que tem defendido o aumento da fiscalização no bairro histórico. “Estamos, desde há vários anos, a fazer uma articulação mais directa com entidades como a PSP, a Polícia Municipal e a CML, para aumentar a fiscalização no que diz respeito às práticas menos cívicas realizadas na via pública – consumo excessivo de álcool e práticas sexuais – e para que possamos devolver as ruas aos moradores”, explica.

 Jorge Guerreiro, morador, que também é investigador na Universidade Católica, diz mesmo que a diminuição da degradação do Bairro Alto passará, essencialmente, pela “fiscalização” e por “quadros políticos capazes de organizar a sociedade”. O investigador académico pretende sensibilizar a comunidade académica a debater a questão do respeito pelo espaço público e pondera mesmo, numa fase mais avançada, levar o assunto ao poder local. Ou mesmo até ao Governo.


 “Incomoda-me a falta de organização e a invasão do espaço público. A ideia é criar uma boa relação entre todos. Era muito fácil chegar aqui e não renovar as licenças e acabar com os bares, mas não é a solução. O regresso dos guardas-noturnos, uma proposta da Junta de Freguesia de Santo António, pode ser uma boa ideia”, defende. “A EMEL cresceu imenso e funciona muito bem. Se deixar o meu carro dez minutos no passeio, tenho logo uma multa, o que quer dizer que há fiscalização. Então, porque não há fiscalização no Bairro Alto também? Não há, porque não há interesse que haja. Porque não se vêem polícias?”, questiona, ainda, incitando à reflexão.

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