terça-feira, 18 de abril de 2017

Habitação e comércio de Lisboa necessitam de criar “estratégias” para além do turismo

De salientar:
“Carla Salsinha não deixou de frisar também a necessidade da criação de um plano “para que Lisboa não seja só comércio de luxo ou lojas low cost”. “Se isto acontecer, para os portugueses deixará de ser apetecível virem fazer compras à cidade”, afirmou a dirigente associativa, já depois de alertar para o facto de “o comércio normal estar a desaparecer”. Deu o exemplo de Arroios, onde “se conta pelos dedos das mãos as lojas que ainda estão nas mãos de portugueses”.


Salsinha disse que “todos os tipos de comércio têm direito a existir”, mas confessou ter dificuldade em entender a concentração de lojas de recordações turísticas de baixo custo e de kebabs, “em locais onde os comerciantes portugueses não conseguem sobreviver”. Apesar das rendas cada vez mais altas, só na Baixa haverá 97 lojas de souvenirs detidas por cidadãos do Bangladesh, disse a presidente da UACS. E depois, para além dessas, há todo um mundo de lojas muito caras e das grandes cadeias multinacionais. Tudo isto estará a criar um quadro muito desfavorável para o comércio convencional.”
OVOODOCORVO


  Habitação e comércio de Lisboa necessitam de criar “estratégias” para além do turismo

POR O CORVO • 19 ABRIL, 2017 •

A capital portuguesa está a passar por um profundo e acelerado processo de mudança, sobretudo nos últimos quatro anos, como resultado da subida meteórica do seu apelo turístico. As consequências têm sido sentidas por todos e estão à vista. Esse foi o único ponto no qual coincidiram as opiniões daqueles que se reuniram para debater o assunto, na manhã desta terça-feira (18 de abril), no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), no âmbito da conferência internacional “Lisboa, que futuro? 2017”.

A partir daí, foi muita a discordância sobre as consequências que tal revolução tem – e continuará a ter – sobre o tecido social e económico da cidade. Tanto que, já no final da mesa redonda, alguém falou na necessidade de se pensar o debate sobre a questão “para além da polarização artificial entre ser a favor ou contra o turismo ou ser a favor ou contra a reabilitação urbana”. O que mereceu a concordância de muitos, a avaliar pelo aplauso a essa intervenção e à subscrição explícita dessa mesma ideia por duas pessoas. Terminava-se a discussão com um apelo à necessidade de criar um novo “equilíbrio urbano”, para que Lisboa não sucumba ao peso da pressão turística.

Nas duas horas anteriores, todavia, pudera-se ouvir o quão diversas são as perspectivas sobre um fenómeno em relação ao qual quase ninguém se mostra indiferente. Uma abrangência de posições, afinal, a reflectir a diversidade dos membros do painel de convidados: Carla Salsinha, presidente da União de Associações do Comércio e Serviços da Região de Lisboa e Vale do Tejo (UACS); Vítor Costa, presidente da Associação de Turismo de Lisboa (ATL); o arquitecto José Mateus e ainda Leonor Mateus, do Movimento Quem Vai Poder Morar em Lisboa.

E se todos eles concordaram com os aspectos benéficos da actividade turística para a cidade – essencialmente a nível económico -, apenas Leonor Mateus fez críticas contundentes à forma como a mesma se está a desenvolver e aos efeitos que tem na qualidade de vida dos habitantes. “Não existe uma política pública de habitação, nem nacional nem municipal. Há um pensamento estratégico da câmara altamente elitista, que trata como pobres os que não conseguem aceder à habitação”, afirmou, ao criticar “as medidas avulsas” neste campo, mas também o que considera ser “a desregulação total” do mercado imobiliário. No seu entender, a pressão causada pela demanda turística está a causar “o aumento da desigualdade social e da especulação imobiliária”.

Bem menos crítica em relação ao fenómeno turístico, Carla Salsinha, a representante dos pequenos comerciantes, não deixou de frisar também a necessidade da criação de um plano “para que Lisboa não seja só comércio de luxo ou lojas low cost”. “Se isto acontecer, para os portugueses deixará de ser apetecível virem fazer compras à cidade”, afirmou a dirigente associativa, já depois de alertar para o facto de “o comércio normal estar a desaparecer”. Deu o exemplo de Arroios, onde “se conta pelos dedos das mãos as lojas que ainda estão nas mãos de portugueses”.

Salsinha disse que “todos os tipos de comércio têm direito a existir”, mas confessou ter dificuldade em entender a concentração de lojas de recordações turísticas de baixo custo e de kebabs, “em locais onde os comerciantes portugueses não conseguem sobreviver”. Apesar das rendas cada vez mais altas, só na Baixa haverá 97 lojas de souvenirs detidas por cidadãos do Bangladesh, disse a presidente da UACS. E depois, para além dessas, há todo um mundo de lojas muito caras e das grandes cadeias multinacionais. Tudo isto estará a criar um quadro muito desfavorável para o comércio convencional.

“O turismo é importante para Lisboa, até pelo património requalificado. Mas não há uma estratégia para o comércio da cidade, por parte da câmara. Sem dúvida que abriram muitas lojas novas, mas está a desaparecer muito do comércio diferenciador, com identidade própria, que é aquele que o turista procura. Se na Baixa apenas existirem hotéis, lojas históricas e lojas de brindes, o turista vai perder o interesse”, afirmou, apelando a que a Câmara Municipal de Lisboa tenha uma maior sensibilidade nos licenciamentos. Apesar de tudo isso, considera a actividade turística determinante para a revitalização da cidade.

Algo que vai ao encontro das visões unanimemente optimistas de Vítor Costa, representante do Turismo de Lisboa, e do arquitecto José Mateus. “O turismo é uma vocação do nosso país, há que saber aproveita-la em condições”, disse, a certa altura, Mateus, que elogiou o trabalho da CML, porque, “finalmente, é reconhecível uma visão global da cidade, sobretudo numa noção de fruição do espaço público”. As ruas estão mais bem tratadas, agora apetece andar nelas, bem como no metropolitano, considerou. “Quando era miúdo, era comum ver as pessoas a atirarem sacos de lixo para as traseiras dos prédios”, recordou.

 Para o arquitecto, que tem trabalhado em diversos projectos de reabilitação na cidade, “o que se assiste, neste momento, é a um enorme esforço de requalificação do centro da cidade, permitindo que esta seja mais compacta e eficiente”. E ainda respondeu aos lamentos dos que falam na existência de um processo de valorização excessiva da propriedade, resultante da elevada pressão turística e das muitas intervenções de reabilitação a ela associadas. “Se o arquitecto, com o seu trabalho, não promover a subida de valor, é incompetente”, afirmou, antes de reconhecer, porém, que os beneficiários de tais operações urbanísticas constituem “uma faixa mais reduzida”.

José Mateus, que rebateu a necessidade de uma maior intervenção pública no que toca à imposição de limites na construção – “nunca vi um cenário em que a regulamentação fosse tão forte, um quadro tão limitativo e restritivo” -, salientou ainda a importância de existir abertura para a inovação arquitectónica na cidade. “Dentro da autenticidade, tem de haver lugar para o contemporâneo”, disse, fazendo notar que “Lisboa sempre foi uma cidade cosmopolita”.

 Já Vítor Costa, que dirige o Turismo de Lisboa, reconhece as consequências óbvias do turismo na vida da capital, mas encara-as mais como uma inevitabilidade. “Como alternativa económica, é a mais limpa”, considera, lembrando a importância decisiva da actividade, sem que a mesma tenha o peso nocivo para o ambiente da presença industrial outrora existente dentro da capital. “Evoluímos”, afirmou, ainda antes de acenar com números: “a produção do turismo na área de Lisboa, em 2015, equivaleu a 4,7 vezes a produção da Auto-Europa”.

Texto: Samuel Alemão

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