domingo, 27 de novembro de 2016

Adiós Dictador / A História o absolverá?


Adiós Dictador
A morte de um ditador é sempre uma boa notícia

Diogo Queiroz de Andrade
26 de Novembro de 2016, 17:28


Ditador não é uma palavra bonita. Por isso os românticos sempre preferiram apelidar Fidel Castro de El Comandante, que ia melhor com a figura heróica que levou a revolução comunista até Havana. Depois disso, Castro passou cinquenta anos a esmagar a liberdade do seu povo em nome de um ideal, eternizando-se como um déspota que nunca olhou a meios para segurar o poder.

Fez da ilha um paraíso para turistas em busca de praias baratas, comida em conta, prostitutas desesperadas e ruínas charmosas. Com isso dividiu a nação cubana entre os que tinham acesso à economia do turismo, que vivia de dólares, e os cidadãos comuns, dependentes de uma moeda quase inútil.

Em nome da igualdade construiu um charco de pobreza onde as senhas de racionamento eram o ícone infeliz de uma vida à beira do desespero. Não seria nunca a alfabetização dos cubanos ou os míticos cuidados de saúde ao dispor dos estrangeiros que desculpariam a brutalidade do regime, até porque vale de pouco saber ler quando um livro custa três vezes o salário do mês. E de nada adianta ter cuidados de saúde gratuitos quando se arrisca a vida para fugir, a nado, em busca da liberdade americana a 145 quilómetros de distância. O extraordinário povo cubano merecia muito melhor.

Castro foi, e ainda é, um ídolo para os ditadores de pacotilha sul-americanos que levam os povos à miséria – como se vê na Venezuela. E é também um ícone para os românticos do Maio de 68, tão prontos a fechar os olhos aos crimes desde que o alinhamento ideológico aparente batesse certo com o pensamento de riguer. Mas nunca o argumento da luta anticapitalista pode justificar o registo terrível de direitos humanos sempre assinalado pela Amnistia Internacional.

Fez questão de colocar tropas cubanas nas disputas independentistas africanas – não por acreditar nos direitos soberanos dos outros povos, mas por fervor ao credo comunista. Foi esse mesmo fervor que o levou a defender todos os crimes soviéticos, recebendo em troca os rublos necessários à sustentação de um regime economicamente inviável. Quando chegou a hora de importar a guerra fria para o hemisfério Norte, não hesitou – e com isso foi um dos principais responsáveis pelo momento em que a guerra nuclear esteve mais próxima de acontecer.

A morte tem o condão de oferecer a quase todos uma trégua benévola na análise crítica, mas a História dificilmente esquecerá os muitos crimes de Castro. E ainda bem.

A História o absolverá?
A História não trata necessariamente mal os ditadores, sobretudo quando são “grandes” e nacionalistas.

Jorge Almeida Fernandes
26 de Novembro de 2016, 20:52

A História não é um tribunal. Tenta reconstituir e explicar, o que pode dar lugar a juízos mais severos do que as catilinárias ideológicas. De resto, a História não trata necessariamente mal os ditadores, sobretudo quando são “grandes” e nacionalistas. Outra coisa é a opinião, que depende das épocas e das geografias.

Houve a lenda do revolucionário romântico, com fantástico talento para vender a sua imagem a jornalistas, a intelectuais — de Sartre a García Márquez — e, obviamente, aos jovens revolucionários que nos anos 1960 emergiam por todo o Ocidente. Muitos deles foram mais fascinados pelo Che. Com razão. O Che morre ainda jovem, martirizado na Bolívia, o que faz dele o ícone por excelência. Fidel morre na cama aos 90 anos. Mas sempre foi “El Comandante”, figura omnipresente na segunda metade do século XX e referência da esquerda um pouco por todo o mundo. Até à sua “primeira morte” com o fim da URSS.

Ao princípio dizia Fidel: “A revolução cubana é uma democracia humanista.” Prometeu dar dignidade aos cubanos. Garantiu a saúde e o ensino — mas em troca das liberdades e do persistente hábito de fuzilar e encher cadeias.

O estúpido bloqueio americano não é responsável por tudo. Também os desastres da estatização económica colocaram Cuba sob tutela soviética. E, em termos de dignidade, Cuba tornou-se numa “Disneylândia da miséria” e, mais tarde, com o turismo, num paraíso de prostituição, como nos melhores tempos da ditadura de Batista. À História bastará narrar.

A independência da revolução perante a URSS sempre foi relativa. Em 1962, quando Cuba esteve no centro da crise dos mísseis russos, Fidel viu com desgosto Krustchov humilhá-lo, resolvendo a crise entre “os dois grandes” e mandando retirar os mísseis sem dar satisfações à pequena Cuba. Fidel prendeu o antigo líder comunista, Anibal Escalante, para mostrar a sua independência dos russos. “El Comandante” era ele. Os russos concordaram. Mais tarde, ao intervir em África, de Angola à Etiópia, fez Fidel uma obra de “internacionalismo revolucionário” ou serviu de força de apoio à expansão do império soviético, com alguns dividendos económicos? A resposta da História não será difícil.

Por que durou, e dura, tanto tempo o regime? O historiador cubano Joaquín Roy, director do Centro da União Europeia na Universidade de Miami, lembra no El País a explicação do diplomata britânico David Thomas. “A revolução cubana era, de origem, made in Cuba, não imposta pelos tanques soviéticos, um produto crioulo.” A hostilidade americana fez o resto.

Prossegue Roy: “O legado do castrismo no contexto latino-americano está centrado num aspecto nacional e noutro pessoal. O regime vendeu magistral a sublimação da construção de uma nacionalidade a partir de uma consciência antes débil e confusa. (…) Castro explorou até ao paroxismo o anti-ianquismo, convertendo-o numa parte consubstancial da identidade nacional.”

Foi também um ideólogo dos males da América Latina e, por isso, teve uma larga projecção no subcontinente, apesar da falência de todas as aventuras guerrilheiras. Nenhum seguidor, a começar por Hugo Chávez, teve a sua envergadura.


Conclui Roy: “É possível que a História não chegue a absolve-lo. Mas na América Latina será difícil esquecê-lo, ainda que se note um certo grau de alívio.” E não só na América Latina.

Sem comentários: