quarta-feira, 25 de maio de 2016

Os fantasmas da Áustria ensombram a Europa


OPINIÃO
Os fantasmas da Áustria ensombram a Europa
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 24/05/2016 / PÚBLICO

Norbert Hofer do FPÖ, Partido da Liberdade da Áustria, da direita populista ou extrema-direita, esteve muito próximo de ganhar a eleição para Presidente da República de 22 de Maio último. Foi derrotado, por uma escassíssima margem, pelo candidato do Partido Os Verdes — A Alternativa Verde, Alexander Van der Bellen. Decisivo, nesse resultado, foi o voto por correspondência dos eleitores que vivem fora da Áustria. As eleições mostraram uma sociedade profundamente dividida. Quando a Áustria entrou para a União Europeia em 1995, juntamente com a Finlândia e a Suécia, tinha-lhe sido reservado um lugar de bom aluno, e, como país próspero, de contribuinte líquido para o orçamento da União Europeia. Ninguém previa turbulência. Nas grandes decisões europeias, esperava-se que, tranquilamente, como pequeno Estado, passasse despercebida, limitando-se a ser claque da linha europeísta então dominante. Com o estatuto de Estado neutral desde 1955, a sua política externa seria essencialmente um apêndice da Alemanha, na altura o Estado mais europeísta das potências europeias tradicionais. No entanto, a Áustria afastou-se do guião que lhe estava destinado pela União Europeia. Um século depois, os fantasmas da Áustria ressurgiram e ensombram também a Europa. Estes encontram-se em parte ligados à história da Alemanha e das tragédias europeias da primeira metade do século XX, mas mergulham, também, nas profundezas do passado do Império Austríaco e Austro-Húngaro.


Os fantasmas da Alemanha são mais conhecidos. Como principal potência beligerante da I e II Guerra Mundiais, a Alemanha deixou marcas em todo o continente europeu e fora dele. O nazismo e o holocausto da população judaica abriram feridas e traumas profundos que ainda hoje subsistem. A derrota militar, a ocupação pelas potências vencedoras em 1945, a divisão durante a Guerra-Fria e reunificação em 1990, fazem parte da memória sobre o passado recente de qualquer alemão e europeu. A centralidade (re)adquirida na actual União Europeia, com a crise da Zona Euro e a crise dos refugiados, reabriram a questão do seu papel. Em parte, os fantasmas da Alemanha são também os da Áustria. Hitler nasceu na Áustria. Esta foi anexada pela Alemanha nazi — o Anschluss de 1938 —, com o apoio de uma parte significativa da população. As trágicas perseguições à população de origem judaica e aos opositores ao nazismo foram similares às ocorridas na Alemanha. Também a Áustria foi ocupada militarmente pelos vencedores da II Guerra Mundial e teve a sua capital dividida em sectores de ocupação, como ocorreu em Berlim. No cinema, as imagens do memorável filme de Carol Reed “O Terceiro Homem” (1949), captaram a desolação da Viena dessa época.


Quando se procura compreender a actual deriva da Áustria para a direita populista e extrema-direita, vem inevitavelmente à mente o passado, ainda muito próximo temporalmente, do nazismo e do anti-semitismo. Todavia, o actual problema austríaco é bastante mais complexo e profundo. De um ponto de vista histórico-político, o conturbado passado do país, herdeiro de um dos maiores impérios europeus, é, sem dúvida, importante para essa compreensão. Importa ter em mente que, há um século atrás, existia ainda o Império Austro-Húngaro. Nas suas sucessivas versões, foi um caso de extraordinária longevidade ligado aos Habsburgos. Como todos os impérios, era multiétnico, multireligioso e multinacional — multicultural, na linguagem de hoje. Abrangia as actuais Áustria e Hungria, mas também a República Checa, a Eslováquia, a Eslovénia, a Croácia, a Bósnia-Herzegovina, o Sul da Polónia, o Oeste da Ucrânia e da parte ocidental da Roménia. O seu colapso e desaparecimento estão ligados à I Guerra Mundial. Na Europa de há um século atrás, um Estado multicultural era um anacronismo insuportável. Tinha de ser destruído. O futuro eram as nações e a modernidade política o Estado-nação. Esse foi o modelo que a Europa criou, para si própria, e exportou para o mundo. Hoje, a União Europeia, renega-o.


A Áustria nunca se recompôs totalmente do trauma do colapso do Império, em 1917-1918. Foi-lhe negado, pelos aliados vencedores da I Guerra Mundial, o nome inicialmente escolhido — República da Áustria Alemã —, bem como a possibilidade de unificação com a Alemanha. Viena perdeu, a partir daí, o estatuto de uma das grandes e mais cosmopolitas capitais europeias — o golpe final foi dado pelo nazismo nos anos 1930. No início do século XX, aí germinavam as ideias mais avançadas das artes, da cultura, da ciência e da política. A partição do Império, que deu origem a diversos Estados sucessores no Centro e Leste da Europa, foi uma das causas da crónica instabilidade europeia nos anos 1920 e 1930. Os problemas das fronteiras e minorias dos territórios com reivindicações em rota de colisão, devido à dispersão de grupos nacionais, foram inúmeros. A questão do Tirol do Sul (Trentino-Alto Adige em italiano), incorporado pela Itália após a I Guerra Mundial, é exemplo que ainda agita reivindicações. Outro caso trágico foram os alemães dos Sudetas, que ficaram órfãos do Império. O descontentamento das substanciais populações germânicas (mais de três milhões) que habitavam as regiões da Boémia e a Morávia entre as duas guerras mundiais — usado e manipulado por Hitler para anexar a Checoslováquia em 1938 —, foi uma sequela da desintegração do Império Austro-Húngaro.


No pós-guerra, a Áustria, tal como a Alemanha, fez o seu mea culpa.Mas o final da Guerra-fria e as guerras da Jugoslávia dos anos 1990 foram um primeiro momento onde despertaram os fantasmas do passado. Provavelmente mais do que qualquer outro Estado europeu, a Áustria sentiu as repercussões do conflito. Para os austríacos, os Balcãs são sinónimos de tragédia. A sua própria tragédia. Foi em Sarajevo, na Bósnia, o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, o herdeiro da coroa dos Habsburgos. Iniciou-se aí a cadeia complexa de acontecimentos que levou à I Guerra Mundial e ao fim do Império. As guerras da Jugoslávia, pela proximidade geográfica e ligações históricas — Eslovénia, Croácia e Bósnia-Herzegovina eram territórios do Império —, geraram a sensação de insegurança e reavivaram más memórias. Aspecto importante, houve também um fluxo significativo de refugiados dos Balcãs para a Europa rica, onde se inclui a Áustria. Esse contexto foi habilmente explorado por Jörg Haider, o líder do do FPÖ na época. Em 2000 inquietou a União Europeia após ter atingido perto de 30% dos votos nas legislativas. Isso levou, durante algum tempo, a sanções desta, promovidas pela França de Chirac. Não impediram, no entanto, que Jörg Haider integrasse um governo de coligação chefiado por Wolfgang Schüssel, do ÖVP, o Partido Popular — o tradicional centro-direita. Até aí, usualmente, esse partido alternava no poder com o SPÖ, o Partido Social Democrata do centro-esquerda.O colapso do sistema partidário tradicional da Áustria do pós-guerra vem dessa altura.


Mais recentemente, a crise dos refugiados da Síria e de outros conflitos do Médio Oriente e Sul do Mediterrâneo, que adquiriu grande intensidade em 2015, reabriu mais a porta aos fantasmas do passado. Ao contrário da Alemanha — que, pela sua centralidade europeia, nunca teve qualquer embate com potências islâmicas — na Áustria as memórias históricas são negativas. Estão estreitamente associadas à própria formação da identidade austríaca. E não é só pelo passado mais recente, de domínio austríaco do antigo território otomano da Bósnia, entre 1878 e 1918. O Império Otomano, uma potência militar de primeira grandeza entre os séculos XV e XVIII, cercou duas vezes Viena, em 1529 e 1683. Ameaçou conquistar a capital e a generalidade dos territórios da Áustria e do Império dos Habsburgos. Os actuais refugiados, que são largamente populações fugindo de conflitos internos do mundo árabe e islâmico — a Síria é o caso mais dramático —, reavivam memórias desse passado. Naturalmente que a objecção óbvia é que estamos perante refugiados e migrantes económicos e não exércitos invasores. E que essas imagens e rivalidades são estereótipos ultrapassados no mundo de hoje. Todavia, por razões objectivas e subjectivas, nem toda a população austríaca e europeia vê isso assim. No mundo islâmico a Sul e a Oriente, a sua violência e conflitos mostram estar noutro ciclo histórico, que desassossega os europeus.



Na perspectiva das tendências que já se desenhavam na Áustria dos anos 1990, a forte ascensão eleitoral do FPÖ de Heinz-Christian Sprache e Norbert Hofer, a partir de 2015, é consequência “natural” destas. A Áustria, apesar das especificidades aqui assinaladas, não é um caso isolado. O que temos assistido — resultado das frustrações de partes importantes da população com a globalização, a integração europeia e as transformações demográficas ligadas aos movimentos migratórios —, é ao colapso, quase generalizado, dos tradicionais partidos de poder, à esquerda e à direita. Isto para regozijo dos partidos da direita populista, ou extrema-direita, similares ao FPÖ de Norbert Hofer, como a Frente Nacional em França, a Alternativa para a Alemanha ou o Partido da Liberdade na Holanda. E também da esquerda populista e radical que se alimenta do colapso da esquerda de poder. Naturalmente que são más notícias para a União Europeia. Eram os partidos do consenso europeísta que imperava até há pouco tempo atrás. Nas últimas décadas, de forma convicta ou oportunista, ligaram a sua imagem aos sucessos da União Europeia. Hoje sofrem as consequências da revolta dos eleitores face às crises da Zona Euro e dos refugiados e à confrangedora incapacidade desta. No caso da Áustria, o problema é acentuado pelos fantasmas do passado que regressaram em força e ensombram a Europa. Veremos se estes vieram para ficar.

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