domingo, 24 de abril de 2016

Manuel Salgado viola deliberações da Câmara de Lisboa no Bairro Alto


Manuel Salgado viola deliberações da Câmara de Lisboa no Bairro Alto
Meramente referencial” e “orientação genérica” é como define as deliberações que o impediam de autorizar a mudança de uso de um palácio e a demolição de um prédio pré-pombalino

José António Cerejo / 25-4-2016 / PÚBLICO

“Só na proposta 150/2009 se fala em ‘uso exclusivo como unidade hoteleira’, sem que tal tivesse tradução nas peças da hasta pública”, diz Salgado para justificar decisão

As deliberações aprovadas pela Câmara de Lisboa não contam nos serviços tutelados pelo vereador do Urbanismo, Manuel Salgado. Essa é pelo menos a conclusão que se tira do facto de estes serviços terem autorizado outros usos para um palácio vendido pelo município com a condição de ele se destinar “exclusivamente ao uso de unidade hoteleira”.
DR
A conclusão de que as deliberações camarárias são ali letra morta não resulta, porém, de um lapso, ou da negligência de um qualquer técnico. É o próprio gabinete do vereador — em resposta escrita enviada ao PÚBLICO 21 dias depois de ser questionado — que explica que a exclusividade do uso hoteleiro consagrada na deliberação aprovada, em 2009, pelo executivo chefiado por António Costa não era para levar a sério.
“Só na proposta n.º 150/2009 se fala em ‘uso exclusivo como unidade hoteleira’, sem que tal tivesse tradução nas peças da hasta pública”, lêse na resposta. Detalhando a ideia, Salgado, ou quem ele encarregou de o fazer, afirma: “Face aos termos e condições do estabelecido nas peças escritas da hasta pública, designadamente no caderno de encargos e nas condições especiais, o referido uso era ‘meramente referencial’ e não imperativo, permitindo assim que pudesse ser outro mediante autorização do município.”
O edifício em causa é o Palácio Braancamp, um imóvel do século XIX situado no Bairro Alto, perto do Príncipe Real, mas não visível da via pública. O comprador, que pagou 2,4 milhões de euros em 2009, foi uma empresa do grupo hoteleiro 3K.
Uma outra empresa deste grupo adquiriu cinco anos depois, também em hasta pública, um segundo edifício camarário contíguo ao palácio. Neste caso, a actuação dos serviços de Urbanismo também tem uma particularidade. O prédio, um edifício pré-pombalino localizado na Travessa do Conde de Soure, foi vendido em Dezembro de 2014 com uma condição clara: destinava-se a ser reabilitado e não podia ser demolido. Seis meses depois, em Junho de 2015, Salgado autorizou a sua demolição parcial — que, na verdade, foi total e ocorreu em Janeiro deste ano —, com a justificação de que ele estava “em estado de ruína iminente”.
A capital do charme
Quanto ao Palácio Braancamp, a sua alienação fez parte do malogrado projecto “Lisboa Capital do Charme”, através do qual António Costa tentou vender, em 2009, seis palácios camarários. A ideia consistia em reconfortar os cofres camarários, permitir a reabilitação dos imóveis e reforçar a oferta hoteleira da capital no segmento dos chamados “hotéis de charme”. Todavia, dos seis palácios em causa, apenas o Braancamp foi vendido. Seis anos antes, no mandato de Santana Lopes, já o Palácio da Rosa, na Mouraria, tinha sido vendido pela câmara para ser transformado em hotel de charme, algo que nunca sucedeu.
Nos termos da deliberação 150/2009, o executivo autorizou a alienação do Palácio Braancamp, por meio de hasta pública, sendo o edifício “destinado, exclusivamente, ao uso de unidade hoteleira”. Simultaneamente, aprovou as Condições Gerais e Especiais da hasta pública a realizar, com o valor base de 1,8 milhões de euros.
Nesses documentos nada se dizia quanto ao seu futuro uso, mas adiantava-se que “para efeito de projecto de reabilitação do imóvel devem ser consideradas as condicionantes urbanísticas gerais e especiais aplicáveis, enunciadas em estudo (...) em anexo, o qual, sendo meramente referencial, apenas teve como objectivo aferir da viabilidade técnica da operação”. O documento esclarecia que “o anteprojecto de obras de beneficiação/ reabilitação deve ser apresentado até ao prazo máximo de 180 dias após a data de celebração da escritura”, mas não fixava qualquer penalização em caso de incumprimento.
Uma vez que a escritura foi outorgada em Julho de 2009, aquele prazo findou em Janeiro de 2010, sem que na câmara tenha entrado qualquer anteprojecto. Um ano e meio depois foi finalmente apresentado um pedido de informação prévia (PIP), com o objectivo de alterar e ampliar o palácio e aí instalar a prevista unidade hoteleira. O pedido foi deferido por Salgado em Junho de 2012, mas logo a seguir o promotor mudou de opinião. Afinal já não queria fazer um hotel, razão pela qual pediu à câmara para alterar o uso a dar ao imóvel, por forma a abrir aí “uma creche com serviço de ATL”. Ainda em 2012, a câmara autorizou a mudança de uso, ficando o caminho aberto para a criação de uma creche num palácio comprado por 2,4 milhões de euros.
Desde então, nem hotel, nem creche, nem obras. O local e os seus jardins foram esporadicamente usados para a realização de festas e outros eventos particulares e o prazo de validade do PIP terminou entretanto.
“Meramente referencial”
Contactado pelo PÚBLICO acerca da autorização de mudança de uso em desrespeito da deliberação camarária, o gabinete de Salgado argumentou como já se disse. Solicitado a esclarecer o assunto, tanto mais que nas Condições Especiais da hasta pública o que se diz ser “meramente referencial” não é o uso hoteleiro, mas sim o estudo efectuado para “aferir da viabilidade técnica da operação”, o vereador insistiu, três semanas depois: “A proposta 150/2009 aprovada em reunião de câmara refere que a alienação é para a construção de um hotel. Contudo, as peças escritas da hasta pública, as quais foram aprovadas pela mesma proposta, admitiam a possibilidade de a aquisição ser feita para outros usos.”
Para complicar o caso, a intervenção com que o então vereador do Património, Cardoso da Silva, defendeu na assembleia municipal a alienação do edifício explica como é que o uso exclusivo para fins hoteleiros entrou na proposta. “A pedido de um grupo municipal (...), foi vertido na própria proposta o uso para hotelaria, porque isso antes estava nas condições do Caderno de Encargos para a hasta pública, mas não estava na proposta”, lê-se na acta da reunião em que a venda foi aprovada. Sendo certo que nos anexos da proposta relativa a esta hasta pública não existe qualquer Caderno de Encargos, mas apenas as respectivas Condições Gerais e Especiais, e nestas — ao contrário do que afirma Salgado — nada consta de concreto em relação ao uso, terá de se concluir que a hotelaria ao entrar na proposta saiu dos anexos.
Questionado sobre as medidas tomadas pelo município perante o facto de os compradores não terem apresentado qualquer anteprojecto passados seis anos sobre a data limite, o vereador respondeu: “As condições da hasta pública não prevêem qualquer sanção específica em caso de incumprimento do prazo contratual, pelo que estamos a analisar a situação não havendo ainda qualquer decisão.” Igual resposta, palavra por palavra, foi dada quanto ao incumprimento do prazo que obrigava o promotor a concluir em Janeiro deste ano, segundo a câmara, as obras que nem sequer iniciou no prédio adquirido junto ao palácio Braancamp, na Travessa do Conde de Soure. Só que, neste caso, o equívoco ainda é maior. Isto, porque as normas do programa Reabilita Primeiro Paga Depois (RPPD), aprovadas pela câmara em 2012, e ao abrigo das quais foi vendido este edifício, estabelecem que “as condições da hasta pública deverão
fixar as penalizações por incumprimento contratual, incluindo a reversão da propriedade do imóvel”. Mais do que isso, o Caderno de Encargos determina que o município “aplicará uma penalização correspondente a 1% sobre o valor arrematado do imóvel por cada mês completo de atraso relativamente ao prazo previsto para a conclusão da obra de reabilitação, desde que decorrente de factos exclusivamente imputáveis ao adquirente”.
Multa de 4000 euros/mês
Atendendo a que o edifício foi arrematado por 415 mil euros, mais do dobro do preço pelo qual foi à praça, a penalização devida entre Janeiro deste ano e o termo das obras cujo projecto ainda não foi entregue seria de 4150 euros por mês.
Quem acha que nada há a pagar, além de Salgado, que diz não estarem previstas penalizações, é José Teixeira, sócio da empresa compradora. “Nós não podíamos fazer a obra sem demolir o que lá estava, e a câmara só emitiu o alvará para o fazermos em Janeiro deste ano. Para nós, o prazo começa a contar nessa altura e não na data da escritura”, afirma o empresário, que nada quis dizer sobre o Palácio Brancamp, de cuja empresa proprietária também é sócio.
A demolição do prédio da Conde de Soure levanta, todavia, uma outra questão. É que o RPPD, tal como foi aprovado pela câmara, tem por objectivo “promover a reabilitação de património municipal devoluto e em mau estado de conservação”. Por outro lado, a “ficha de edificabilidade” do imóvel fornecida aos participantes na hasta pública restringia a sua viabilidade urbanística à “reabilitação com manutenção do edifício existente”. Quem concorreu à compra do edifício, então degradado e com os vãos das janelas emparedados, sabia que teria de o recuperar e não o poderia demolir. (…)

PCP e CDS-PP condenam

Postos ao corrente deste assunto pelo PÚBLICO, os vereadores Carlos Moura, do PCP, e João Gonçalves Pereira (na foto), do CDS-PP, manifestaram fortes reservas face à actuação da autarquia. “Não é admissível que as deliberações da câmara sejam desrespeitadas com o beneplácitos dos serviços. Nenhum estudo se pode sobrepor a uma deliberação do executivo”, afirmou o eleito do PCP. Já o vereador do CDS exigiu “uma clarificação célere por parte do presidente da câmara”, relativamente a “processos pouco claros, na medida em que desvirtuam o sentido das propostas que foram objecto de deliberação da câmara”. De acordo com Carlos Moura, trata-se de uma situação “profundamente condenável” e o PCP “não deixará de tomar uma posição”. O caso da demolição do prédio da Travessa do Conde de Soure, sublinhou, “só vem reforçar todas as dúvidas que o PCP sempre teve em relação ao programa Reabilita Primeiro Paga Depois, confirmando que ele está ao serviço dos promotores e não da cidade”. Frisando que, na sua opinião, o que é mais criticável é o comportamento da câmara e não dos promotores, João Gonçalves Pereira declarou: “É manifestamente estranho que na hasta pública de Outubro de 2014, preparada pelos serviços municipais, o imóvel tenha como objectivo a ‘reabilitação com manutenção do edifício existente’ e que poucos meses depois seja autorizada uma demolição com o fundamento de ‘risco de derrocada iminente’”. O autarca estranhou também que a câmara “ande desenfreada a cobrar impostos e taxas aos lisboetas e nestes casos não aplique aos promotores imobiliários as sanções pecuniárias a que tem direito”.

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