segunda-feira, 14 de março de 2016

E se o tempo de Marcelo estivesse a terminar? / José Manuel Fernandes


E se o tempo de Marcelo estivesse a terminar?
José Manuel Fernandes
13/3/2016, / OBSERVADOR

Marcelo é produto de um tempo político e mediático que está a desaparecer. É bom por isso que não se alimentem ilusões sobre afectos, já que estes novos tempos são sobretudo de crescente tribalização.

Marcelo Rebelo de Sousa transformou a sua tomada de posse numa longa festa que se prolongou por quatro dias, da sessão solene na Assembleia à abertura das portas do Palácio de Belém, passando por uma festa com crianças em Lisboa e uma “arruada” improvisada no Porto. Muitos viram nesta “Presidência de afectos” um novo tempo capaz de reconciliar o país com ele mesmo e os partidos uns com os outros. Permito-me duvidar. Mais: interrogo-me se aquilo a que assistimos por estes dias não é mais um sinal do fim de um tempo de normalidade democrática, um tempo que a pouco e pouco vamos vendo ser substituído por uma era de surpresas, riscos e divórcios ainda mais cavados do que os que hoje conhecemos.

O Marcelo que vimos de boné e manta nos joelhos na Praça do Município de Lisboa ou a distribuir beijos e autógrafos nas ruas do Porto não é apenas, nem sobretudo, o político em estado de graça, o líder amado e reconhecido – é ainda a estrela da televisão, o companheiro dos domingos à noite, o candidato que fez campanha sem fazer, o “professor” estimado pela sua simpatia e eterna jovialidade.

Conhecemos casos de celebridades da televisão que tiraram partido desse seu estatuto para se projectarem como políticos (o italiano Beppe Grillo, o americano Donald Trump), não me estou a recordar de nenhum político que, depois de conhecer alguns fracassos (Marcelo perdeu umas eleições para a Câmara de Lisboa e demitiu-se da liderança do PSD antes de disputar umas legislativas), tenha conseguido tornar-se num fenómeno de popularidade graças a um programa de televisão e acabar levado em ombros para a Presidência.

Não há nenhum mal nisto, e este capital de simpatia (e “afecto”) que acumulou até pode vir a ser-lhe imensamente útil. Mas isso não impede que, ao olhar para aquelas cenas nas ruas de Lisboa e do Porto, não tivesse ficado a pensar se não estaríamos perante o último exemplo de alguém capaz de beneficiar até ao limite de um espaço mediático relativamente uniforme. Não porque não possa surgir alguém com idênticos talentos, mas porque esse espaço mediático está a desaparecer.

Por outras palavras, estas mais brutais porque vou extremar os termos da dicotomia: o país que elegeu e está a festejar Marcelo Rebelo de Sousa é o país das televisões em que ainda existe um palco comum onde todos os debates se travam; o país a que Marcelo vai presidir será cada vez mais o país do Facebook, um país onde esse espaço comum tenderá a ser cada vez mais segmentado e polarizado, um país mais propenso ao tribalismo do que ao consenso.

Não deixa de ser uma extraordinária, mas significativa, coincidência que os dias que antecederam a festa de Marcelo tenham sido marcados por uma manifestação desses novos tipos de tribalismos, em concreto a forma como, no Facebook e noutras redes sociais, se procurou linchar Henrique Raposo por causa do seu livro Alentejo Prometido.

O fenómeno Marcelo é típico de um tempo em que a televisão cria um espaço público comum para o debate social e político. O caso Henrique Raposo é revelador de um novo tempo em que esse espaço público se segmenta e organiza em torno de “tribos” radicalizadas. Temo que seja este último o verdadeiro “novo tempo”, mas um “novo tempo” de contornos menos agradáveis e, sobretudo, mais perigosos para a nossa vida democrática.

Em Portugal temos reflectido pouco sobre a segmentação e tribalização dos espaços de discussão política, pelo que vale a pena deixar duas ou três breves notas sobre o que pode estar em causa.

Primeiro ponto: a democracia, para funcionar, necessita de um espaço público comum onde todos possam trocar argumentos e partilhar decisões. Na democracia ateniense esse espaço era a ágora onde os cidadãos debatiam e votavam. Um tal modelo de democracia directa só funciona em espaços políticos pequenos, onde todos podem falar directamente com todos. Nas democracias modernas esse espaço comum de debate era, ainda é, o proporcionado pelos órgãos de informação – primeiro os jornais, depois as rádios e as televisões. Ora aquilo a que hoje começamos a assistir é à erosão desse espaço comum, mediado por jornalistas, e à sua substituição quer por um espaço mediático mais débil e mais segmentado, quer pela ilusão de que as redes sociais são uma espécie de substituto moderno da ágora ateniense (há um artigo muito interessante que permite perceber melhor esta evolução e os seus perigos, e cuja leitura recomendo vivamente: Media and Democracy: The Long View, de Marc F. Plattner, na edição de Outubro de 2012 do Journal of Democracy).

Segundo ponto: algumas das ameaças que a democracia enfrenta nos dias de hoje decorrem precisamente da erosão desse espaço comum de debate, onde a diferença de ideias e propostas é o ponto de partida para compromissos, por uma realidade comunicacional muito mais segmentada onde se perde a noção do compromisso e se procura apenas os que concordam connosco, num processo de crescente radicalização e, quando chegamos ao terreno da política, numa fácil deriva para diferentes tipos de populismo. Recentemente Anne Applebaum, jornalista e historiadora, escreveu um artigo onde, de forma quase provocatória, descreve os danos que as redes socais estão a causar em países com democracias menos consolidadas: Mark Zuckerberg should spend $45 billion on undoing Facebook’s damage to democracies.

Um dos problemas destes novos espaços mediáticos tribalizados é que, de repente, ninguém acredita em nada – ou então acredita facilmente em teorias da conspiração. E não, não me estou apenas a referir apenas a fenómenos como o ISIS. O mesmo se passa quando pensamos no caldo de cultura que está a alimentar o sucesso de Donald Trump. Ou a mobilização de activistas indiferenciados que, no Reino Unido, permitiu a eleição de Jeremy Corbyn para a liderança dos trabalhistas. Ou ainda a brusca queda de credibilidade dos órgãos de informação alemães, paralela ao crescimento eleitoral de partidos anti-imigração.

Podia multiplicar os exemplos, mas a verdade é que, se olharmos para dentro de casa, verificaremos que a tendência não é para criar consensos, pelo contrário. Percam algum tempo nas redes sociais. Ou nas caixas de comentários da imprensa online. Pior: assistam aos debates na Assembleia e registem o grau de acrimónia. Se tiverem um pouco de memória, recordar-se-ão que este registo político mais radical não é de hoje: foi inaugurado por José Sócrates e, na altura, apoiado por grupos que actuavam através de blogues, nomeadamente um famoso blogue anónimo alimentado por assessores do governo, onde se criava um clima de confronto permanente. Há gente que vem desses caldos de cultura e está hoje nas primeiras linhas das lideranças partidárias, pelo que não devemos ter ilusões: também em Portugal estamos a assistir à erosão de um espaço público comum e à sua substituição por um tribalismo que ignora os meios de informação tradicionais e os substitui por partilhas na internet onde apenas se conta a sua “verdade”.

Marcelo comentador era excepção. Chegava a todos. E nunca ofendia ninguém. Não se comprometia, não revelava o que pensava, falava de factos políticos, não se pronunciava sobre políticas públicas. Já em tempos escrevi sobre isso e não me vou repetir. A verdade é que a popularidade assim granjeada está agora bem à nossa vista. Sendo, insisto, a popularidade do comentador, mais do que a do político e ainda não a do Presidente, pois essa acabará por ser condicionada pelas decisões difíceis que tiver de tomar. Nessa altura há três coisas de que podemos estar seguros: a primeira, é que a aura de entertainer ter-se-á desvanecido pouco a pouco; a segunda, que terá de desagradar a alguém, pois não se pode agradar sempre a todos; e a terceira que, muito provavelmente, estaremos um pouco mais avançados neste processo de degradação e tribalização do espaço público.


Nada do parece estar pela frente (a nossa crise que não acabou, as nossas dívidas que não desapareceram, o nosso crescimento que não voltou, as nossas reformas que não se fizeram, a nossa Europa que não se entende e até pode desfazer-se) indica que os próximos dez anos sejam mais tranquilos e estáveis do que os últimos dez. As verdadeiras provas de Marcelo não serão as dos “afectos”, antes as de um país onde, como em quase todo o mundo desenvolvido, há cada vez mais gente zangada e mais políticos a falar para e pela gente zangada.

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