sábado, 13 de fevereiro de 2016

Do lixo financeiro ao lixo político / TERESA DE SOUSA

Se se respira, de forma completamente alienada ainda um clima político “que fará inveja “, isso deve-se apenas à conhecida passividade e indolência Lusa.
OVOODOCORVO

OPINIÃO
Do lixo financeiro ao lixo político
TERESA DE SOUSA 14/02/2016 - PÚBLICO

Lá como cá, nos últimos trinta anos a classe média que sustenta as democracias foi “espremida” graças à “trickle down theory” (assim já não tenho de dizer neoliberal): se se criarem as melhores condições para as empresas e os investidores, o crescimento económico acabaria por beneficiar toda a gente. O problema é que isso não aconteceu aos rendimentos da classe média, que estagnaram indefinidamente. O que sobrou foi o populismo.”

Ainda respiramos em Portugal um clima político que fará inveja a outros países, apesar do populismo do Bloco e do anacronismo do PCP.

1. A subida das taxas de juro da dívida portuguesa a 10 anos tem, como toda a gente sabe, múltiplas explicações, umas mais importantes do que outras. Não se deve apenas à forma como decorreu a negociação do Orçamento para 2016 em Bruxelas, nem sequer à composição do apoio parlamentar ao Governo de António Costa. Deve-se à extrema volatilidade dos mercados financeiros, que procuram lugares seguros para investir (mesmo que a juros negativos) e que tem na sua origem, para além das nuvens carregadas que impedem sobre a economia global, alguns sinais preocupantes sobre a situação do sistema bancário europeu. Esta é a realidade, a verdadeira, não a “da esquerda” que, para os fanáticos da austeridade, só serve para disfarçar a culpa de um governo que ousou pôr em causa a ortodoxia decretada por Berlim para chegarmos à salvação plena e sem pecado. Muita gente disse isto bastante melhor do que eu.

Desculpem, portanto, a insistência, mas o meu medo é que, do “lixo financeiro” a que as agências nos condenaram, passemos rapidamente ao “lixo político”, esse sim com um alto risco de rebentar de vez com a Europa. Cito a Economist: “Para os que temem que a repetição da crise 2007-2008 esteja iminente, a semana passada trouxe novos presságios. As acções de grandes bancos mergulharam (…). Os custos de garantir as dívidas dos bancos contra o default subiram fortemente, especialmente na Europa”. A parte de que gosto mais é esta: “O patrão do Deutsch Bank sentiu-se obrigado a declarar que a instituição que lidera é ‘sólida que nem uma rocha’; o ministro alemão das Finanças declarou que não estava preocupado (desta forma aumentando a preocupação).”

A Economist também fala das novas regras de resolução europeias, que responsabilizam os bancos pela limpeza dos seus balanços à custa dos seus investidores e não do erário público, deixando de contaminar a dívida soberana. A banca europeia até pode estar mais sólida do que o pânico dos mercados indicia, mas isso pouco interessa. Ao contrário dos EUA (onde há mil maneiras de financiar a economia, para além dos bancos), na Europa o financiamento depende quase totalmente da banca, acentuando a sensação de risco.

O que se debate hoje na imprensa da especialidade é se vamos assistir a um Lehman Brothers europeu, ou se esse é um risco descartável, porque as circunstâncias do sistema financeiro parecem bastante mais sólidas. A outra razão que explica o nervosismo dos mercados tem a ver com as perspectivas de desaceleração do crescimento global, por causa da China e de outras grandes economias emergentes, mas também pelas dúvidas quanto à solidez da economia americana. A Presidente da FED subiu as taxas de juro (é bom lembrar que passaram de zero para zero vírgula qualquer coisinha), mas pode ter de adiar outras subidas, mesmo que o seu objectivo central seja o desemprego, que caiu para uma taxa inferior a 5%.

2. Quando Mário Centeno entrou no Eurogrupo era este o quadro geral. Com os juros da dívida soberana a dez anos a ultrapassarem os 4 por cento, ficou sem qualquer margem de manobra, a não ser comprometer-se a apresentar medidas adicionais até à nova revisão de Abril. Há aqui uma lição para o Governo: é preciso ter cautela porque um choque externo desta natureza atinge as economias mais débeis com uma força inesperada. Isso quer dizer, em termos de política interna, que António Costa vai ter de explicar aos seus parceiros à esquerda que há uma linha vermelha que não ultrapassará, por mais que eles gritem e ameacem: a presença de Portugal no euro, mesmo que isso possa custar mais do que o previsto. Isso implica, por exemplo, que contribuam para a estabilidade governativa em vez de andarem a sabotá-la. Não se trata de obediência a Bruxelas. Como já se viu noutras capitais, nem os esquerdistas (tipo Syriza), nem a extrema-direita (tipo Marine) se atrevem a dar um passo cujas consequências suspeitam que não sejam maravilhosas. Marine Le Pen lembrou-se agora de que a saída do euro (e da Europa) poderia ser um problema para as suas ambições políticas e lá foi anunciando que alinharia por uma negociação idêntica à que David Cameron leva a cabo.

3. Dito isto, não há um simples facto que ajude a ilibar Wolfgang Schäuble do que disse no início do Eurogrupo, na quinta-feira. Foi nesse mesmo dia que a imprensa europeia repetiu nas suas primeiras páginas o nome do maior banco alemão, como um dos factores que ajudou ao pânico nos mercados, penalizando fortemente a banca e aumentando o custo do endividamento de Portugal, da Irlanda (vá-se lá saber porquê) e de outras economias mais frágeis. A única ideia que lhe subiu à cabeça para explicar esta turbulência foi dizer que o governo português estava a desestabilizar os mercados. Com tudo o que se disse acima, não há alma, por mais moderada que seja, que resista a um desejo súbito de se manifestar à frente da embaixada alemã. Como era inevitável, a direita já regressou à velha ladainha de que a culpa é toda nossa. O que este Governo fez foi um Orçamento que, depois das negociações com Bruxelas, não será tão amigo da economia como era sua intenção (o que exige um estratégia económica muito clara, que ainda não é visível), mas que inicia uma nova fase, fundamental: distribuir os sacrifícios de forma mais justa, aliviando um pouco os rendimentos daqueles que foram esmagados pelo IRS ou pelo desemprego. A distinta lata dos membros do anterior Governo ultrapassa tudo o que é imaginável quando diz que os impostos indirectos que vão aumentar são “um ataque à classe média”. Não podemos nada contra a asfixia do IRS. Mas podemos decidir mudar de carro só para o ano, contribuindo de resto para o equilíbrio da balança externa porque, a menos que andemos todos de Sharan, os carros são importados.

4. E chegamos ao “lixo político”. Ainda respiramos em Portugal um clima político que fará inveja a outros países, apesar do populismo do Bloco e do anacronismo do PCP. Por toda a parte, a ausência de uma alternativa política (com as devidas consequências económicas) no quadro do euro e da integração europeia está a enviar os eleitores mais afectados pela baixa de rendimentos, pelo aumento das desigualdades, pelos efeitos da globalização, pelo medo dos imigrantes, para braços da extrema-direita e de uma esquerda radical mais ou menos populista e totalmente irresponsável quanto às soluções económicas. A reacção das democracias a este modelo único é, naturalmente, diferente de país para país. Mas algum dia, que ainda não chegou, as forças políticas moderadas que prezam a União Europeia, vão ter de encontrar uma forma de inspirarem os seus eleitores e de garantirem que a identidade europeia se constrói com solidariedade e com uma partilha de soberania real e benéfica. Lendo o que acabei de escrever, nem eu própria acredito que isso ainda seja possível. Mas o contrário é demasiado feio.


5. Martim Wolf (e não só ele) escreveu no Financial Times que alguma vez a distância cada vez maior entre as elites (globalizadas) e os povos (ou seja, as classe médias das democracias ocidentais) acabaria por abrir as portas ao populismo. Temos agora a oportunidade de olhar para o que se está a passar na América para avaliar a dimensão do que ele diz. De um lado, Donald Trump (descobrimos tarde e a más horas que não era apenas um número de entretenimento) soma e segue, obrigando a sucessivos mea culpa de analistas e políticos. A sua força é apresentar-se como o antipolítico, que promete expulsar os imigrantes, banir os muçulmanos, torturar terroristas de tal forma que o “waterbording” passaria a ser uma coisa bastante suave. Do outro lado, o fenómeno é menos aberrante mas igualmente perigoso. Berni Sanders, que se declara socialista num país em que a palavra foi sempre olhada como uma bizarria europeia, e que promete uma revolução política, conseguiu surpreender-se a si próprio, porque as pessoas (incluindo as mais novas) ainda querem ser inspiradas por alguém e, na ausência de Obama que é caso único, acham o seu discurso no mínimo refrescante. Estamos a ver-nos ao espelho. Lá como cá, nos últimos trinta anos a classe média que sustenta as democracias foi “espremida” graças à “trickle down theory” (assim já não tenho de dizer neoliberal): se se criarem as melhores condições para as empresas e os investidores, o crescimento económico acabaria por beneficiar toda a gente. O problema é que isso não aconteceu aos rendimentos da classe média, que estagnaram indefinidamente. O que sobrou foi o populismo.

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