quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Costa Iznogoud / Alexandre Homem Cristo

Note-se que, em menos de um ano, Costa já defendeu um bloco central, um governo minoritário do partido vencedor das eleições, um governo minoritário do PS (o partido derrotado). Já elogiou o Syriza e já o criticou. Já disse que a economia portuguesa estava em recuperação e já negou que a recuperação existisse. Já argumentou que, com governos minoritários, o maior partido da oposição deve viabilizar os orçamentos de estado e já garantiu que não viabilizará o orçamento de estado que PSD/CDS apresentarão. Enfim, já atacou ferozmente os partidos à esquerda do PS e, agora, com eles já só encontra convergências. Ou seja, António Costa escolheu, disse e fez sempre aquilo que, em cada momento, o tornasse mais popular, lhe valesse mais aplausos, o aproximasse mais do lugar que ele julga ser seu por direito – São Bento. É essa a sua coerência.”
Alexandre Homem Cristo 

Costa Iznogoud
Alexandre Homem Cristo
14/10/2015, OBSERVADOR

Enquanto mantém o país refém de negociações improváveis, Costa já converteu esta nova e curta legislatura num ano de campanha eleitoral permanente. Leia-se, pouco mais do que tempo perdido para o país

“Quero ser califa no lugar do califa!”. Esta é a rotineira exigência de Iznogoud, vizir e personagem criada na década de 60 por Goscinny, o génio da banda-desenhada francesa também por detrás de Asterix. Cruel, colérico, viciado na intriga e cego pela sua própria ambição, as aventuras de Iznogoud narram os seus incansáveis empreendimentos em busca do poder, nos quais os fins justificam os meios. Ele prepara golpes engenhosos. Ele aplica os truques mais improváveis. Ele elabora as conspirações mais vis. Ele vicia as regras institucionais. Daí o seu nome – uma fórmula afrancesada da expressão inglesa “is no good”, que designa alguém que é má rês. Ora, Iznogoud é mesmo má rês e, felizmente, também é dado ao infortúnio – por mais que se dedique e tente, as suas aventuras enumeram uma longa sucessão de fracassos que o impedem de ascender a “califa no lugar do califa”. O seu prémio de consolação foi elevar-se, em França, a símbolo da ambição política desmedida, servindo de caricatura para algumas das maiores figuras da classe política francesa.

António Costa não quer ser califa, mas quer ser primeiro-ministro no lugar do primeiro-ministro. Se fosse francês, teria o seu Iznogoud personalizado nos jornais. Como é português, descrevem-no com ligeireza como um político profissional e ambicioso. Só que esta já não é uma simples história de ambição política (dessas há muitas por aí). É a história de quem coloca o poder acima de tudo o resto, a começar pelo seu próprio partido e a acabar pelo país. Sem olhar a meios ou ver limites num percurso delineado por golpes, truques e traições, por guinadas e viragens, por ditos e desmentidos.

Note-se que, em menos de um ano, Costa já defendeu um bloco central, um governo minoritário do partido vencedor das eleições, um governo minoritário do PS (o partido derrotado). Já elogiou o Syriza e já o criticou. Já disse que a economia portuguesa estava em recuperação e já negou que a recuperação existisse. Já argumentou que, com governos minoritários, o maior partido da oposição deve viabilizar os orçamentos de estado e já garantiu que não viabilizará o orçamento de estado que PSD/CDS apresentarão. Enfim, já atacou ferozmente os partidos à esquerda do PS e, agora, com eles já só encontra convergências. Ou seja, António Costa escolheu, disse e fez sempre aquilo que, em cada momento, o tornasse mais popular, lhe valesse mais aplausos, o aproximasse mais do lugar que ele julga ser seu por direito – São Bento. É essa a sua coerência.

Dir-me-ão que focarmo-nos no seu carácter não é um ângulo de análise pertinente, que a política é mesmo assim e que Costa é apenas mais um player desse jogo impiedoso. Mas não é verdade que assim seja. Não é verdade porque a ambição desmedida e o carácter de Costa têm e terão consequências políticas. Para si e para o PS, que está a ser empurrado para a renegação da sua identidade. Mas, muito mais importante do que isso, para o país.

Enquanto mantém o país refém de negociações improváveis, António Costa já converteu esta nova e curta legislatura num ano de campanha eleitoral permanente. Leia-se, pouco mais do que tempo perdido para o país. A reforma da segurança social continuará adiada, sem tempo ou disponibilidades para cedências negociais. Várias reformas na educação, para adequar o sistema às exigências do século XXI, ficarão na gaveta. A recuperação da economia portuguesa, já de si frágil e dependente de um mundo instável, poderá ser travada. A confiança das instituições internacionais em Portugal, que tanto tempo demorou a ser reconquistada, poderá ser contestada. Tudo o que é fundamental para o futuro ficará preso ao presente. O país viverá em standby.


Pergunto: um homem disposto a tudo isto por ambição pessoal e sobrevivência política deve ser primeiro-ministro? Obviamente que não. Não deve, sequer, ser líder da oposição. Se a esquerda engolisse os seus ódios contra a direita e não estivesse, ela também, disposta a tudo para impedir um governo PSD/CDS, perceberia isto. E, mais, compreenderia que António Costa é hoje o maior inimigo da tão sonhada “união das esquerdas”. É que, tal como fez quanto ao PS e ao país, também jogou com a viabilidade futura desse projecto político: deslegitimou-o através deste seu golpe de poder. É, portanto, urgente que os bons do PS acordem e falem. Pela sobrevivência do seu próprio partido. E porque o país não merece isto.

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