segunda-feira, 15 de junho de 2015

TAP/A menina bonita de Portugal

Parte da simbologia da TAP estará em exposição no Museu do Design e da Moda (Mude)

A menina bonita de Portugal

FÉLIX RIBEIRO (Com Raquel Almeida Correia) e NUNO FERREIRA SANTOS (fotografia)
PÚBLICO / Revista 2

Vender a TAP é uma decisão que paira há mais de 20 anos sobre aquele que é um dos mais preciosos símbolos portugueses, “uma bandeira de Portugal no céu das marcas”.

Foi profética. Margaret Thatcher tirou da bolsa um lenço de papel branco para cobrir a cauda do 747 diante si. “Voamos com a bandeira britânica, não com esta coisa horrenda”. Estávamos em 1997, numa conferência do Partido Conservador britânico. Thatcher acabara de ver as maquetas dos novos desenhos da British Airways para a cauda dos seus aviões. A operadora estava em franca expansão e queria agarrar a frente da onda globalizadora no sector. Abandonou por isso a tradicional Union Jack e trocou-a por uma série desenhos étnicos, ousados, imediatamente impopulares. A operadora, aliás, voltou atrás poucos anos depois, recuperou as cores tradicionais da bandeira britânica, que ainda hoje usa, e deu razão a Thatcher e ao seu lenço branco.

Thatcher estava certa, mas não inocente. Fora ela quem privatizara a British Airways na década de 80, para além de um grande número de outras empresas sob o controlo do Estado britânico. A opinião pública não se esquecera disso. O caso das caudas da British fez surgir um debate no Reino Unido em torno da representação da identidade nacional no exterior e Thatcher foi acusada de cinismo. Se queria a bandeira nas caudas da British Airways, não a deveria ter privatizado.

O que estava em causa na British Airways não era um projecto estético falhado, explica à Revista 2 Carlos Coelho, o autor da imagem da TAP que foi para os ares em 2005, quando a empresa fez 60 anos. “Perderam a identidade. A ideia de que a British Airways é uma companhia do mundo é falsa”.

Em Portugal, o debate sobre a privatização da companhia de bandeira durou quase duas décadas. Até que, na quinta-feira, o Governo anunciou a venda de 61% da TAP ao consórcio de David Neeleman, dono da Azul, e de Humberto Pedrosa, o empresário português que controla o grupo Barraqueiro. Os novos donos da transportadora aérea ofereceram, para já, 354 milhões de euros (que podem crescer para quase 500 milhões), mas só dão garantias quanto à manutenção da sede da companhia e de rotas estratégicas durante dez anos.
A conversa com Carlos Coelho acontece num dos gabinetes da sua empresa, a Ivity, a poucos metros das duas torres brancas que em breve se tornarão numa das novas sedes da EDP em Lisboa. O terceiro andar da Ivity é uma obra de imaginação quase pueril, certamente globalizada. Encontramos uma fuselagem vinda do Reino Unido, à saída do elevador, cujo interior funciona como sala de conferências por Skype. Noutra divisão há uma máquina-decoração, a Gertrudes 3000, que finge controlar a empresa. Lá fora, as duas torres da EDP parecem feitas de luz. Há uma sensação palpitante de estranheza.

A EDP foi privatizada em 2011. Seguiram-se a REN e a ANA, em 2012, os CTT em 2013 e, pelo meio, a participação que o Estado detinha em vários negócios através da Caixa Geral de Depósitos. Só a privatização da EGF, já no final de 2014, vai para um grupo português. Por ela, a Mota-Engil paga quase 150 milhões de euros, uma gota de água num universo de quase 9300 milhões que o Estado encaixou desde 2011 com o programa de privatizações. Há 20 anos que a TAP está para ser privatizada também. Mas só com o actual Governo é que está em causa a venda total do grupo. Numa primeira fase, serão vendidos 66% do capital do Estado. O restante seguirá no período máximo de dois anos. Para Carlos Coelho, vender a TAP não é a mesma coisa do que uma outra empresa do Estado. É uma questão de “alinhamento identitário”, diz. “A TAP é uma bandeira de Portugal no céu das marcas, onde voam nacionalidades.”

Carlos Coelho sabe do que fala quando fala de marcas de aviação. Quando estava a preparar a mais recente imagem da TAP, foi pressionado para usar um tema mais fresco, mais azul, “verde e encarnado não, que são cores foleiras”. A pressão não foi ostensiva e a equipa de Carlos Coelho acabou por fazer o contrário. Reforçou a imagem do país e acentuou a palavra Portugal. Mais do que isso: as cores da bandeira nacional foram engrossadas, a bold, na cauda do avião, no mesmo local em que Thatcher tapou com um lenço as imagens dispersas da British Airways. A marca TAP parece ter-se tornado num caso de paixão para Carlos Coelho. “Ela está no céu. As outras estão na terra. Estas são as nossas caravelas de agora. Isto é tudo muito romântico, mas é um bocado assim. Nós somos um país de ligações.”

Parte da oposição à venda da TAP é ideológica e o que está em causa não é inteiramente uma questão de soberania. Carlos Jalali, politólogo, explica que essa é uma das razões pelas quais os processos de privatização são historicamente pouco decisivos em períodos de eleições. É património que sai das mãos do Estado, sim, mas não há necessariamente uma crise de identidade. “Nós não temos questões nacionais prementes que nos dividam, não é como em Espanha, onde a questão da identidade é uma questão que se vive”, diz Jalali à Revista 2. “Os eleitores percebem que a oposição à privatização da TAP é também uma questão de manutenção da participação pública nestas empresas”. Tal como Thatcher no Reino Unido, Cavaco Silva não saiu prejudicado do período de privatizações que encabeçou nos anos 90. A sensação de desapropriação até se poderia ter ela própria desvanecido, se é que alguma vez existiu, não fosse pela imagem recente do desmantelamento de uma das grandes empresas privatizadas na altura, a Portugal Telecom.

Esboços para as primeiras fardas

Há muito na TAP, sobretudo na história e relação que Portugal tem com a operadora de bandeira nacional, que faz com que a sua privatização seja diferente das restantes. A começar pelo momento em que é decidida. “A TAP representa o culminar desse processo de privatizações — o último reduto —, que as forças críticas a muitas destas privatizações e ao abandono do papel do Estado e dos símbolos do Estado-Nação procuram, em desespero de causa, evitar”, diz por escrito à Revista 2 o economista Ricardo Cabral. A operadora aérea atinge também uma dimensão estratégica, que, pelo menos em parte, continua desconhecida dos portugueses por oposição aos números da dívida do grupo. Segundo Ricardo Cabral, por exemplo, a operadora é a porta para um grande volume de exportações indirectas e para a entrada de mais de 11 mil milhões de euros em divisas estrangeiras. É algo decisivo para Carlos Coelho. “A TAP divide-me no meu pensamento liberal. Se, por um lado, eu não acredito na intervenção do Estado na economia, de forma directa, uma companhia aérea de bandeira é um elemento fundamental num país.”

Mas o que é que se haveria de fazer pela TAP? O tema é frequentemente opaco. O consenso, contudo, sempre foi o de que alguma coisa teria de ser feita. A empresa está tecnicamente falida e há muito que era necessária uma solução. Fosse ela na esfera do privado ou do público. Nos últimos anos, a TAP tem variado entre lucros e prejuízos, com bons resultados sempre muito agarrados ao transporte aéreo e outros ruinosos devido ao negócio da compra de uma unidade de manutenção à falida Varig, em tempos a grande operadora brasileira. Uma operação que está ainda a ser investigada pela Procuradoria-Geral da República.

Um dos muitos cartazes que irão constar da exposição do Mude

Os problemas agravaram-se em 2014. A actividade mais lucrativa do grupo começou a derrapar pelas mais diversas causas: mau planeamento na entrega de seis novos aviões e, com isso, problemas na operação durante a época alta; uma queda acentuada das tarifas, uma onda de contestação interna do pessoal de voo e os 120 milhões de euros que ainda não foram recuperados da Venezuela e de Angola. Todos estes efeitos negativos fizeram com que o negócio da aviação apresentasse, em 2014, o maior prejuízo de sempre: 46,4 milhões de euros. No grupo, os resultados foram ainda piores: 85,1 milhões de euros negativos, fruto do negócio da manutenção no Brasil. A dívida cresceu para 1062 milhões de euros. O mais grave, em termos de passivo, é que dominam os empréstimos de curto prazo, com datas de vencimento apertadas. Depois de 20 anos de indefinição, entre intervenções do Estado, possibilidades de privatização parcial e total, a situação agravava-se.

Há algum simbolismo na prolongada indeterminação da TAP. Bárbara Coutinho, directora do Museu do Design e da Moda (Mude), prepara por estes dias uma exposição sobre a imagem da operadora aérea portuguesa. Diz à Revista 2 que a história da representação da TAP foi uma luta constante entre a globalização e o património português. “Há aqui um ideário que se constrói e cria sempre essa tensão. Uma ideia modernizadora e globalizante, e depois, ao mesmo tempo, uma intenção de ligar a TAP de forma clara a uma marca nacional.” Este jogo de forças não lhe é exclusivo. Outras transportadoras de bandeira promoveram durante décadas a sua identidade nacional e agora concorrem num mercado altamente competitivo e globalizado. “A companhia aérea como símbolo nacional de Portugal no ar, do Reino Unido no ar, da França no ar, é algo que se alimentou durante muito tempo e que agora colide com as dinâmicas da globalização”, afirma Carlos Jalali.

A diferença é que a TAP se manteve no Estado à medida que a esmagadora maioria das outras companhias seguia tendência contrária. As sucessivas crises da aviação criaram a necessidade de muitas se reestruturarem e capitalizarem através de privatizações. Outras fundiram-se e muitas faliram. Já as tentativas de venda da TAP caíram todas pelo caminho. Aconteceu primeiro com a Swissair, em 2001, dez anos depois de se começar a pensar pela primeira vez em privatizar a operadora, no Governo de Cavaco Silva. A queda do negócio foi mais um duro golpe nas contas já desgastadas da TAP. Mais recentemente foi Germán Efromovich, rejeitado em 2012 por falta de garantias financeiras e novamente candidato este ano.

A exposição da TAP no Mude abre no dia 15 de Julho. Os artigos ainda estão a ser catalogados e a maioria dos cartazes estão empilhados no cimo das mesas. Bárbara Coutinho vasculha por exemplos daquilo a que prudentemente chama, por agora, “época de ouro” da TAP. Os anos 60 e 70. Este período foi, de facto, a época de maior prosperidade da companhia. E não só na sua imagem — a directora do Mude diz, entusiasmadamente, que este foi o período em que a empresa começou a ser trabalhada pelas mãos de designers como Daciano Costa. Junte-se também a década de 50 e tem-se o grande período de afirmação da TAP. Têm-se também os últimos anos de prosperidade e crescimento financeiro. Uma situação a que a companhia nunca mais regressaria depois do 25 de Abril.

Coincidentemente, as décadas de maior riqueza na TAP foram aquelas em que a companhia teve uma gestão privada. Mas a transportadora não começa assim, nem é com ela que começa a história aérea comercial portuguesa. Antes da TAP, Portugal já tivera um voo titubeante daquela que foi a sua primeira companhia aérea comercial, os Serviços Aéreos Portugueses, SAP, parte capital alemão, parte português. Faziam a ligação aérea entre Lisboa, Madrid e Sevilha. Era todavia muito cedo para uma operadora portuguesa e os SAP acabariam por encerrar em 1930 . Na época não houve acordo sobre as operações aéreas entre Portugal e Espanha, como escrevem Alexandre Coutinho e Alda Rocha no livro Tap Air Portugal, a História da Companhia Aérea, editado pela Contra a Corrente.

Os SAP desapareceram sem grande brilho. Mas quatro anos depois, ainda a TAP não era uma possibilidade, surgia a icónica Aero Portuguesa. Tratava-se da única companhia aérea que fazia ligações regulares entre a Europa e o Norte de África durante a Segunda Guerra Mundial. Especificamente Lisboa, Tânger e Casablanca. O avião para Lisboa que Claude Rains debate com Humphrey Bogart no filme Casablanca é um Dakota da Aero Portuguesa. Não que isso seja mencionado no filme. No entanto, esta companhia, que mais tarde seria absorvida pela TAP, desempenhou um papel importante na travessia dos exilados da guerra.

Em 1945, Humberto Delgado propõe a Salazar a criação de uma companhia aérea portuguesa que fizesse a ligação entre Portugal e os territórios ultramarinos. A guerra na Europa estava prestes a terminar e o país, entretanto, criara órgãos de Estado para a gestão da aviação comercial. Salazar, diz-se, aceita imediatamente a proposta de Humberto Delgado. Era criada a TAP – Transportes Aéreos Portugueses. Os seus primeiros aviões seriam os Dakota DC-3, bimotores, adaptados da sua origem militar para a aviação comercial. “Quando a TAP é criada, ela é criada como um serviço”, diz à Revista 2 Alexandre Coutinho, director da revista Avião e co-autor do livro que retrata a história da TAP. “O que dá origem à TAP não é uma motivação económica, é uma motivação colonial.”

O comandante Brás de Oliveira, na sua casa em Sesimbra, entre artigos que serão expostos no Museu do Design

Roque Brás de Oliveira tem 92 anos e uma memória prodigiosa. Na verdade, Roque, o primeiro nome, é pouco utilizado. O seu nome próprio é já de há muito tempo Comandante. Foi o último a sê-lo na Aero Portuguesa e fez parte da segunda geração de pilotos da TAP. Entrou em 1947 na companhia, pouco depois dos mitificados 11 de Inglaterra, o primeiro grupo de comandantes da TAP. Brás de Oliveira tem um discurso perfeitamente afinado. Vai percorrendo-o quase por inteiro, por vezes com trechos idênticos ao registo triunfalista da sua vida descrito pela jornalista Rita Tamagnini, no livro Aeronauta Entre o Céu e o Mar.

É uma das poucas testemunhas vivas da origem da companhia e daquela que foi a maior aventura da TAP: A Linha Aérea Imperial. Tratava-se da ligação mais longa no mundo feita em DC-3. Perto de 12 mil quilómetros de trajecto entre Lisboa e, então, Lourenço Marques, a bimotor. Fazia-se 12 escalas e uma viagem de ida e volta demorava 15 dias. A TAP era a única companhia no mundo a fazer esta ligação em África. Nada disto era lucrativo, mas a principal preocupação era então manter vivo o nervo aéreo entre Portugal e as colónias. É uma surpresa que nenhum avião se tivesse despenhado durante este período. Os tripulantes da Pan Am ficaram estupefactos, conta Brás de Oliveira. “Fazemos isto em DC-3”, disse-lhes num hotel em África, num dia que se encontraram numa escala. “Boa anedota”, responderam-lhe.

As rotas de África, contudo, acabariam por se tornar mais tarde na maior fonte de rendimento para a TAP e o seu fim acabaria por ser dramático para a companhia. Com a descolonização, a operadora perde 40% do seu tráfego só nessas ligações. Acabaria por reequilibrar as operações de voo nas décadas seguintes, a troco de cortes, despedimentos e reestruturações de vários tipos. Mas as ramificações da empresa e a dívida acumulada durante esse período acabariam por ser determinantes para o estado da empresa agora. Os antigos trabalhadores da empresa contactados pela Revista 2 afirmam que não se aperceberam de que o grupo começava acumular dívidas e capitais negativos. Durante as décadas de 80 e 90, aliás, o grupo vive os seus períodos de maior crise. As administrações vão-se sucedendo em catadupa, o que é tido como uma das principais razões para a instabilidade financeira na TAP.

Brás de Oliveira fez o seu último voo em 1981, mas nunca ficou completamente afastado da TAP. Tentou aliás, em privado, influenciar um dos mais importantes acontecimentos recentes na empresa, quando o Sindicato dos Pilotos da Avição Civil (SPAC), que Brás de Oliveira e outros fundaram, fez uma greve de dez dias em Maio de 2015. “Estar dez dias em greve é a maior estupidez que há”, conta à Revista 2. “Depois, ainda por cima, o [Hélder] Santinhos: ‘ei pá, bestial, perdemos 30 milhões’. Eu disse-lhe simplesmente: ‘Estás doido. Não sabes o que estás a pensar. Estás a destruir o sindicato e estás a destruir uma empresa.”

De novo para o pré-25 de Abril. Em 1953, a TAP precisava de capital e Salazar decidiu que o melhor caminho seria transformá-la em sociedade anónima. Era a sua privatização. O Estado só voltaria a controlar a TAP em 1975, através de uma nacionalização a dois tempos, directa e indirecta. Na década de 50, o Governo chamou os principais grupos económicos portugueses para participarem na aquisição de capital da operadora. Os relatos recolhidos por Alexandre Coutinho e Alda Rocha apontam para que tenha havido um banqueiro português que não aceitou o convite de Salazar. Era Ricardo Espírito Santo Silva, tio de Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi, décadas antes de o Grupo Espírito Santo surgir na calha como um dos possíveis candidatos à privatização da TAP, já na década de 90.

Salazar terá então chamado Ricardo Espírito Santo para o convencer a entrar na empresa. Quando o banqueiro lhe disse que o negócio não lhe interessava e era mau, Salazar terá respondido que se este queria entrar nos bons negócios, teria primeiro de comprar alguns maus. As palavras que lhe são atribuídas: “Ora vá lá meter-se na TAP...” E foi isso mesmo que aconteceu. “Mostra bem como a economia era bastante controlada na altura”, diz Alexandre Coutinho, “os empresários só podiam fazer aquilo que o Governo autorizava.


Orloff Esteves mostra álbum de recordações. Era o chefe de cabine no voo que foi desviado por Palma Inácio em 1961

A TAP crescia. Nos anos seguintes, a companhia aérea troca os DC-3 em África por Dc-4 Skymaster, com quatro motores, e encomenda três Lockheed Super Constellation, os topo de gama desse período em matéria de longo curso. Eram os percursores da era do jacto e o maior símbolo da modernização da operadora. Seria um destes aviões que, em Novembro de 1961, é desviado por Palma Inácio, que comandava outros quatro piratas do ar. A operação foi concebida por Henrique Galvão, que apenas meses antes capturara o navio Santa Maria. O objectivo da missão foi cumprido: o avião da TAP rasou Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro e lançou dezenas de milhares de panfletos a apelar ao combate ao Estado Novo e Salazar.

Orloff Esteves era o chefe de cabine no voo que foi desviado. Antes de contar a história do sequestro, Orloff percorrera umas fotografias do comandante José Marcelino a voar a uma altitude absurda na Costa da Caparica. “Andou com o avião tão baixinho que as pessoas até fugiram da praia”, disse à Revista 2. “Olhem à altura que nós andávamos com o Super Constellation, íamos a 14 metros da água, nem isso.”

Foi por isso uma sorte que o comandante que levava o Super Constellation no dia 10 de Novembro de 61 acabaria por ser Marcelino. “Isto poderia ter sido um acidente do caraças. Era o Marcelino que por acaso lá estava”, diz Orloff. Garante que seria pior se tivessem sido uns pilotos belgas que por ali andavam. “Eram uns descontraídos do caraças”, afirma. Poderiam ter deixado Palma Inácio voar e ele, diz Orloff, “tinha a mania das grandezas”. “Tinha a mania que tinha o brevet, mas o gajo nunca passou de mecânico.”

Orloff Esteves trabalhou 40 anos na TAP. Tem agora 88 anos e vê os desenvolvimentos políticos com desconfiança. Diz que não percebe por completo a questão económica, como disseram à Revista 2 outros antigos trabalhadores da empresa. Orloff entrou na TAP em 53 e nada o poderia preparar para o que vinha a acontecer com a indústria da aviação. “Quando veio o primeiro Super Constellation, lembro-me que fui ao aeroporto e entrei no avião. Eu olhei para aquilo e disse: ‘Ena pá. Ao ponto que chegou a aviação. Onde é que isto vai chegar?”. A TAP, reconhece-o, tem de fazer alguma coisa para se manter à tona na nova indústria, mais competitiva e globalizada. Mas nem Orloff nem os cerca de 150 antigos trabalhadores com que se encontra anualmente querem que a empresa seja privatizada.

A alternativa, contudo, também não lhes agradaria. Além da venda a privados, há um outro cenário possível para tirar a empresa da asfixia: a injecção de dinheiro do Estado, como aconteceu em 1994, quando entraram nos cofres da TAP 180 mil milhões de escudos (1450 milhões de euros a valores actuais) do accionista público. Mas, à semelhança do que aconteceu nessa altura, esta capitalização estatal teria de ser necessariamente acompanhada de uma reestruturação profunda, com a anuência obrigatória da Comissão Europeia. Isto porque as regras comunitárias impedem ajudas deste tipo sem que sejam assumidos alguns compromissos.

Há 20 anos, Bruxelas impôs a redução de quase 2600 trabalhadores, a supressão de rotas na Europa e a eliminação de seis aviões, por exemplo. Se isto voltasse a acontecer, é melhor a TAP ir buscar capital a outro lado, diz Orloff Esteves. “Eu acho que a ela é um bocadinho minha, como eu sou dela. Mas também, como as pessoas que têm uma doença grave e definham e definham... Isso não quero.”

O fantasma da reestruturação da TAP foi sempre o grande argumento usado pelo Governo para prosseguir com a privatização. José Maridalho esteve nos confrontos que explodiram entre trabalhadores e polícia em 1993, quando se suspenderam os acordos da empresa. Já tinha estado nas lutas laborais de 73, ano em que os trabalhadores da TAP estiveram num dos principais momentos de reivindicação do pré-25 de Abril. Deu “à sola” nos dois confrontos. O pior, diz, foi o último.“Houve agressões de parte-a-parte. Vidros partidos, pedras arremessadas, cocktails molotov.” Maridalho continua sindicalista mesmo na reforma. Tem um discurso combativo mas independente, assegura. É da opinião, por exemplo, de que as contas do grupo foram manipuladas para sobrevalorizarem o transporte aéreo. Mas aceita a privatização. Não se sente bem em dizer “ao povo português para pagar a viabilização da TAP” e a única coisa que deseja é uma boa gestão. Não a terá de pedir agora ao Estado português.

Com Raquel Almeida Correia


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