sábado, 28 de março de 2015

Teatro do Bolhão abriu as portas do seu novo palácio




Teatro do Bolhão abriu as portas do seu novo palácio
LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 27/03/2015 - PÚBLICO

O novo Teatro do Bolhão, instalado num esplendoroso palácio portuense do século XIX que demorou uma década a recuperar, abriu as portas esta sexta-feira, dia mundial do teatro.

Depois de quase dez anos de obras, o antigo palácio do conde do Bolhão, um belíssimo edifício classificado no centro do Porto, reabriu esta sexta-feira como sede da Academia Contemporânea do Espectáculo/ Teatro do Bolhão.

Final feliz para uma história de persistência que envolveu campanhas nas redes sociais para pagar uma escadaria e angariação de mecenato um bocadinho à má fila, como essa viagem de Alfa Lisboa-Porto em que o actor António Capelo, director da companhia Teatro do Bolhão, convenceu um ocasional companheiro de viagem, que não conhecia de lado nenhum, a pagar os 700 metros quadrados de soalho do novo auditório de 140 lugares construído nas traseiras do palacete.

Depois de uma conferência de imprensa para apresentar a programação até Julho, a inauguração da nova sede começou às 19h00 com uma visita guiada à casa onde o riquíssimo comerciante António de Sousa Guimarães – que mandou erguer este palacete em 1944 – dava as mais badaladas e concorridas festas a que a elite portuense assistiu na segunda metade do século XIX. E como se impunha no dia mundial do teatro, os anfitriões da festa subiram depois ao palco para fechar o programa com a estreia de Édipo, uma encenação do japonês Kuniaki Ida da peça de Sófocles, interpretada por apenas três actores e um coro: António Capelo, João Paulo Costa e João Cardoso assumem múltiplos papéis, como faziam os actores gregos da Antiguidade.

Recuperar o degradado palácio do conde do Bolhão e adaptá-lo às necessidades de uma escola e companhia de teatro custou 2,8 milhões de euros, e a soma não parece exagerada quando olhamos para a sucessão de salas com os seus estuques, pinturas e talhas, originalmente criados por alguns dos melhores artistas portugueses da época.

“Costumo dizer aos nossos alunos que vão estudar na escola de teatro mais bonita do mundo”, conta António Capelo. E é bem capaz de ter razão. Se o Porto já tinha na Lello uma das mais bonitas livrarias do planeta, procuradíssima por turistas, o risco é que o serviço de educação do Teatro do Bolhão, que será responsável por um programa regular de visitas guiadas bilingues ao edifício, se veja em breve sem mãos a medir.

A recuperação do edifício foi projectada pelo arquitecto José Gigante, que trabalhou em estreita colaboração com os responsáveis da escola. Uma das dificuldades a vencer era a transformação de um anexo nas traseiras, onde funcionava a Litografia do Bolhão, no auditório principal da companhia (o salão nobre do edifício original será usado para peças mais pequenas e  experimentais, explica Capelo). Gigante optou por literalmente descolar o anexo do edifício, criando entre os dois uma espécie de rua, ao ar livre.

Sonhado pelos responsáveis da Academia Contemporânea do Espectáculo há uma dúzia de anos, o projecto, que implicou antes de mais a compra do edifício pela Câmara do Porto, enfrentou todo o tipo de dificuldades e houve momentos em que, confessa Capelo, pensaram mesmo que “ia morrer na praia” por falta de financiamento. Se a obra principal foi essencialmente paga por fundos europeus e contribuições dos ministérios da Educação e da Cultura, e ainda da autarquia, foi preciso arranjar um mecenas diferente para pagar o complexo restauro de cada uma das principais salas, e Capelo conta, divertido, que conseguiu um inesperado financiamento, com o qual pagou o chão do novo auditório, numa viagem de comboio. “Percebi às tantas que o senhor que vinha ao meu lado era o presidente da Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal, e disse-lhe: ‘Então temos de conversar’…”.

E no fim ainda faltavam 35 mil euros para restaurar os 68 degraus da escadaria principal. Já não sabendo a quem recorrer, Capelo lançou, inicialmente na sua própria página do Facebook, a campanha de angariação de fundos Degrau a Degrau. Podia contribuir-se com apenas um euro, mas dez euros já davam direito a ver o nome inscrito nos degraus, cem ainda compravam um ano de acesso livre aos espectáculos, e por 500 comprava-se um degrau inteiro.

É divertido ir reparando nas inscrições enquanto se sobe as escadas e ler os nomes de cafés, mercearias e hotéis a par de sindicatos, associações várias e um grande número de particulares. Um dos degraus parece a direcção (antiga e actual) do Bloco de Esquerda, registando as contribuições de Francisco Louçã, Marisa Matias, Renato Soeiro, Catarina Martins ou Alda de Sousa. Outro foi integralmente recuperado a expensas de um grupo de amigos de Pedorido, em Castelo de Paiva, a terra natal de Capelo. E se levantar os olhos do chão e começar a reparar nos candeeiros, saiba que muitos deles já em tempos iluminaram a sala e os corredores do Teatro Rivoli.

Enquanto a escola se vai mudando lentamente para a sua nova casa, que só ocupará verdadeiramente a partir do próximo ano lectivo, a companhia Teatro do Bolhão tem já agendados vários espectáculos para os próximos meses, alguns a apresentar no grande auditório, outros no salão nobre. A ideia, diz Capelo, “é revisitar coisas que para nós foram emblemáticas”. Depois de Édipo, irá ser possível rever Começar a Acabar, uma encenação de João Lagarto a partir de Samuel Beckett, um espectáculo de teatro musical, A Revolução Dos Que Não Sabem Dizer Nós, um espectáculo de Joana Providência, Território e, única estreia até Julho, Almas Mortas, a partir da novela homónima de Gogol. A estas peças somar-se-ão ainda vários concertos e outros espectáculos musicais que o Teatro do Bolhão irá acolher no âmbito de uma parceria com a associação cultural Turbina.

O palácio do conde do Bolhão, que a Câmara do Porto cedeu ao Teatro do Bolhão por 50 anos, não é apenas um edifício esplendoroso, tem também uma história interessante. A imagem pública do conde, um homem que albergou mais do que uma vez a família real, começou a dado momento a declinar, e o comerciante nobilitado chegou mesmo a pagar ao seu amigo Camilo Castelo Branco para escrever boas coisas a seu respeito, numa altura em que a mulher lhe fugira, acusando-o de lhe bater. Acusado de falsificar moeda no Brasil, acabou arruinado e teve de vender o palácio a um credor, o visconde de Fragozelas.


Em 1890, Emílio Biel, fotógrafo da Casa Real e um dos grandes pioneiros da fotografia portuguesa, comprou o edifício e instalou ali o seu estúdio. Injustamente atacado no início da I Guerra por ser alemão, foi nesta casa que morreu, amargurado, em 1915. O palácio terá ainda sido efemeramente arrendado por Raul de Caldevilla, pioneiro da publicidade e fundador da Invicta Filmes, que ali terá instalado a sua empresa publicitária, antes de ser adquirido pelos proprietários da Litografia do Bolhão, que ali funcionou durante largas décadas até ao início dos anos 90.

Sem comentários: