domingo, 29 de março de 2015

O governador no labirinto da política / Manuel Carvalho / As “bavas”, os álibis e as dívidas ou o que fica do inquérito ao BES

O governador no labirinto da política

Custa perceber o papel a que o Governo se prestou ao condenar Carlos Costa
Manuel Carvalho / 29-3-2015 / PÚBLICO

1. Sempre que há um assalto sobram perguntas sobre a actuação da polícia. Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso BES, o governador do Banco de Portugal viveu essa desconfortável sensação. Para a maioria dos deputados, dos líderes partidários, dos membros do Governo e até da opinião pública, a maior destruição organizada de riqueza no Portugal das últimas décadas não se sublima apenas com a identificação dos seus autores materiais. Exige mais cabeças. E como Carlos Costa é um homem que paira sobre o “capital social” do poder, sem relações com deputados, com os líderes partidários ou com os membros do Governo, está no lugar certo para ser a vítima errada disto tudo.
A forma como foi acossado esta semana na CPI diz muito sobre a mesquinhez e a falta de valores do salve-se quem puder da política portuguesa. Num gesto que indicia cobardia e transpira má-fé, tentamse sublinhar os escândalos do BES construindo um bode expiatório. Para se chegar a esse momento, esquece-se a avaliação da honestidade, do sentido de serviço público ou da competência da vítima escolhida. Basta pegar em detalhes, em erros de avaliação, em excessos de prudência, em zelos determinados pela gravidade de decisões como a de salvar um banco dos seus algozes para se construir uma imagem de irresponsabilidade.
Carlos Costa errou muitas vezes, talvez até vezes de mais. A sua cautela fê-lo reagir muito tarde, a sua prudência paralisou-o, os limites dos seus poderes enquanto supervisor aprisionaram-no no formalismo e no medo, as suas hesitações sobre o papel comercial esfacelaram a sua credibilidade. Mas, no essencial, esteve à altura das suas responsabilidades. Ou, ao menos, fez o que pôde. Como escreveu José António Lima, no Sol, “o governador do BdP não fez o mesmo que os seus antecessores, que fecharam os olhos, foram complacentes ou cúmplices com as más práticas ou irregularidades dos banqueiros — este governador pode ter levado demasiado tempo para agir, mas foi o primeiro a ter coragem de enfrentar o todopoderoso clã dos Espírito Santo, de os arredar da gestão do BES e de salvar o que era possível num banco em ruínas”.
O governador está no lugar onde os deputados e o Governo o colocaram não tanto pelo seu desempenho, mas mais por interesse político. A sua situação “lembra a de alguns agentes secretos no pós-Guerra Fria. Já não é útil a quem está no poder e ninguém quer justificar os seus actos”, como escreveu Ricardo Costa, no Expresso. Tornou-se assim um homem descartável, em final de mandato, fragilizado e desgastado pela missão impossível de gerir os estilhaços de um assalto. O seu drama é não ser um super-homem. Estava condenado a hesitar, a esperar, a adiar, a errar e a recorrer a medidas drásticas para salvar o que fosse possível — a resolução do BES no fatídico primeiro fim-de-semana de Agosto.
Percebe-se que os deputados da oposição queiram fazer do caso BES a ilustração perfeita de um tempo de desgoverno. Mas custa mais a perceber o papel a que o Governo se prestou na condenação pública do governador. Em tempos Pedro Passos Coelho tinha avisado que “o que aconteceu no BES não é um resultado de má supervisão, é um resultado de má gestão do banco” e manifestou o seu desejo de que “nenhuma comissão de inquérito inverta este problema”. Não foi preciso a intervenção dos deputados. O seu vice-primeiroministro e a sua ministra das Finanças trataram de “inverter” o problema. Pura tentação: ao agravar as responsabilidades de Carlos Costa, o Governo tenta escapar às suas. Porque por muitas juras que a ministra faça sobre a neutralidade do Governo neste processo, ninguém acredita que em Portugal um banco com a dimensão do BES possa ter estourado sem o seu envolvimento. Como afirmou o sempre desassombrado Fernando Ulrich, “não é possível fazer a separação do Governo da situação do BES”.
No final de todo este processo, incomoda ver Carlos Costa a assumir a carga de culpas que vai muito para lá dos erros que cometeu. Custa ver um homem que, por intuição e pelo seu exemplo, reputamos de íntegro a ser assim demolido ao sabor dos interesses políticos e partidários. “Às tantas, parece ser o culpado disto tudo. Não foi, nem é”, escreveu António Costa, no Diário Económico. Por muito que lhe critiquemos alguns actos, é dever da inteligência e da ética reconhecer que, no final, ele também foi uma vítima de Ricardo Salgado.

2. Num texto particularmente violento contra a “lei da gravidade da mediocridade intelectual e cívica”, o eurodeputado Francisco Assis retoma o caso da lista VIP do fisco para se dedicar a uma apologia embevecida da liberdade e à denúncia áspera do igualitarismo populista que, afirma, grassa no discurso político e mediático. Para Assis, as críticas à existência de um serviço público que concede tratamento de excepção em matéria de direitos individuais a determinadas figuras públicas em vez de se preocupar em garantir a universalidade desses direitos não passa de uma cedência ao “medo de desagradar a uma nova inquisição de natureza eminentemente populista”.
Para Francisco Assis, parece ser impossível combater a devassa do segredo fiscal dos titulares de cargos políticos através de um mecanismo que garanta a todos a partilha dos benefícios desse combate. Esta exigência, afirma Assis, traduz uma “insuficiência” conceptual e lógica do igualitarismo, já que, supostamente, a protecção dos segredos fiscais dos políticos é mais premente (por uma questão do interesse dos media) do que a dos cidadãos comuns.
Não se discute a hierarquia da premência. O que se discute é a razão que leva Assis a afirmar que a sua recusa de um privilégio revela um escasso amor pela liberdade. Esse é o ponto onde Assis cai num populismo invertido, numa espécie de populismo elitista — os ricos e poderosos têm direito a excepções na protecção de direitos. O Estado de direito garante a igualdade de todos perante a lei e a criação de uma lista com protecções especiais para uma determinada classe é uma clara violação do princípio da igualdade — logo é um ataque ao Estado de direito e à liberdade. Ainda mais porque essas protecções não foram discutidas no Parlamento e vertidas em lei — tratava-se de uma perigosa excepção desenhada nos labirintos da burocracia nomeada pelo Governo.

O que esta discussão revela de útil é a necessidade de se garantirem mecanismos que nos salvem do voyeurismo dos agentes do fisco. Mas que nos salvem a todos e não apenas a alguns.

As “bavas”, os álibis e as dívidas ou o que fica do inquérito ao BES
CRISTINA FERREIRA e PAULO PENA 28/03/2015 - 10:16

A maioria vê no caso BES um trunfo eleitoral. Não será de estranhar que, pela primeira vez, PSD e CDS usem a queda dos “poderosos” como bandeira para as legislativas. Mas a comissão de inquérito tem muito mais a mostrar do que as razões da falência do maior grupo privado português.

“Deu-lhe uma bava.” A expressão pode ainda não concorrer para o pódio das novas palavras, aquelas que determinado ano acrescenta ao nosso léxico, mas já tem seguidores. Uma “bava” é, depois da audição de Zeinal Bava, na comissão de inquérito à gestão do BES, um esquecimento útil. Uma espécie de abençoada falta de memória. Afinal, o ex-CEO da PT fez questão de repetir a mesma expressão – “Não guardo na memória” – demasiadas vezes para o gosto dos deputados que qualificaram como “frustrante” a sua prestação.
Há mais expressões novas: ring-fencing, tableaux de bord, conta escrow, ETTRIC. Contudo, a comissão não inovou apenas na linguagem. Criou imagens icónicas, como o embaraço de quase todos os membros da família Espírito Santo, uma das mais poderosas do país, nos últimos 150 anos, perante as perguntas de uma deputada de 28 anos, Mariana Mortágua, sempre calçada com ténis All Star. E uma marca para o futuro: o discurso anticasta (assim mesmo, como o do Podemos, em Espanha) dos partidos da maioria.

Foi o fim, tardio, em Portugal, da cultura Wall Street. Agora, como lembrou o deputado Duarte Marques, PSD, Ricardo Salgado é uma espécie de Ali Babá (embora nas Mil e Uma Noites a moral da história não seja exactamente a mesma...). “Não terá andado o sistema financeiro nos últimos anos a jogar à roleta com o contribuinte português?”, perguntou Paulo Portas que, em 2008, quando se deu a primeira falência na banca nacional, a do BPN, preferia apontar o dedo às falhas do Banco de Portugal.

Agora, por muito “sonolenta” (expressão de Portas para qualificar a actuação de Vítor Constâncio) que tenha sido a regulação do sector bancário, a mira dos partidos da maioria tem outro rosto: Ricardo Salgado. O banqueiro, que entrou na comissão com a alcunha de “dono disto tudo” e de lá saiu qualificado numa pergunta do PSD como “escroque da pior espécie”, é um aparente trunfo eleitoral numa pré-campanha sem grandes bandeiras para agitar.

Leia-se Maria Luís Albuquerque, ministra de Estado e das Finanças: “Houve erros de gestão muito graves. Erros de governance nas instituições. Da auditoria, que não terá visto o que devia. Se calhar as normas deviam ter outro tipo de exigências. Se calhar a supervisão deveria ter visto mais cedo.” Todos falharam, em resumo, excepto o Governo, que não interferiu, concluiu a ministra numa frase que resume todo o álibi de São Bento. O Executivo não salvou o GES, ignorou os pedidos de Salgado, confiou no Banco de Portugal (BdP) e, se tudo correr bem com a venda do Novo Banco (reavendo o Estado os 3,9 mil milhões que “emprestou” ao fundo de resolução), não terá aberto um buraco nas contas públicas comparável ao da nacionalização do BPN.

É claro que esta estratégia tem riscos, e nada disto é linear. A ministra diz que não esteve envolvida na decisão tomada pelo BdP de aplicar a “resolução”, mas, ao inviabilizar a recapitalização via linha da troika, poderá, na prática, ter imposto a aplicação da medida. Afinal, é um banqueiro, Fernando Ulrich, apoiante do PSD, que afirma: “Tenho imensa pena, mas não é possível fazer a separação do Governo desta situação." Será esse o ponto que justifica, agora, passados três meses, as declarações do coordenador dos deputados do PSD na comissão. Carlos Abreu Amorim, numa entrevista ao PÚBLICO, em Dezembro passado, traçou uma nova linha que distancia o PSD da imagem de partido “liberal”, amigo do sistema financeiro (e um dos seus principais beneficiários em donativos de campanhas eleitorais): “Toda a minha vida adulta andei a ler Hayek, Friedman, a escola de Chicago, o liberalismo político clássico. E depois da crise internacional, mas sobretudo neste mês muito intenso na comissão do GES, tudo isso abalou de uma forma muito profunda as convicções que eu tinha sobre o liberalismo. Eu, neste momento, estou com mais do que suspeitas, com a convicção, de que a lógica do liberalismo económico tem uma contradição insanável com a natureza humana. (…) Por isso vou fazer-vos uma revelação: eu já não sou liberal.”

A visão dos reguladores
É este movimento dos partidos da maioria que mais expõe, e fragiliza, o governador do Banco de Portugal. Carlos Costa é o mesmo regulador que, há exactamente quatro anos, no dia 4 de Abril de 2011, chamou os principais banqueiros portugueses (Salgado incluído) para lhes transmitir uma preocupação e um elogio: “Vocês não podem continuar a financiar [as emissões de dívida pública portuguesa]. O risco é afundarem-se os bancos, a parte sã, e a República, que é a parte que criou o problema.”

Como hoje é notório, os bancos não são (e já não eram em 2011) a “parte sã”. Se há conclusão evidente desta comissão de inquérito à falência do BES, é que a crise internacional abalou um dos principais alicerces que sustentavam o negócio financeiro português, desde que o país aderiu à moeda única europeia: a capacidade de sobreviver gerando, e reciclando, dívidas. Não é por coincidência que o ano de 2008 – o ano do crash em Wall Street – é o que marca o início de um dos principais problemas do GES: a ocultação da dívida da ESI.

Não foi um defeito do BES, era o feitio de quase todo o sistema financeiro, do Lehman Brothers ao BCP, do BPN ao Northern Rock. Da Espírito Santo Internacional (ESI) ao Espírito Santo Panamá. Carlos Costa, que fez carreira na banca privada, como director do BCP, chefia um órgão de supervisão que partilha a mesma cultura, os mesmos valores e a mesma noção de eficácia dos banqueiros que regula. Essa é a conclusão do economista Joseph Stiglitz, que qualificou esta “captura do regulador” entre as causas da crise de 2008.

Neste universo, aquilo que parece errado ao comum dos mortais pode ser uma “inovação financeira” digna de elogio. Vender dívida da ESI, já tecnicamente falida, aos clientes do BES, por exemplo. Neste ponto, o outro regulador, Carlos Tavares, da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), parece menos “capturado” do que o responsável do Banco de Portugal. Tavares explicou aos deputados que é “dos antigos”: “No início desta crise defendia-se isto, mas já foi esquecido… As instituições financeiras devem ser mais pequenas e mais simples, menos complexas.” Tavares acrescentou ainda que transparência não garante simplicidade, quando há produtos financeiros descritos em “prospectos de 600 páginas”. “Ninguém consegue ler prospectos de 600 páginas...”

O negócio da dívida
Isso explica a situação de cerca de 2500 clientes do BES, que investiram mais de 500 milhões em dívida da ESI, comprada aos balcões do BES. A operação foi formalmente proibida pelos reguladores em Fevereiro de 2014. Mas a falência da ESI já era conhecida pelo menos desde Setembro do ano anterior. E nada impediu que mesmo depois de Fevereiro esses produtos “tóxicos” tenham continuado a ser vendidos.

Ricardo Salgado e a sua equipa geriam uma espécie de multinacional com sede em vários refúgios fiscais, que garantiam sigilo: Baamas, Panamá, Luxemburgo, Suíça. A arquitectura do grupo mudava conforme as necessidades da dívida. A ESI estava no topo da pirâmide. Abaixo estava o BES e a ES Resources, que detinha toda a parte erradamente qualificada de “não financeira” (na prática, tudo era financeiro, mesmo nos negócios que à partida nada tinham a ver com a banca).

Em 2009, depois da crise, a Resources, com sede nas Baamas, ganhou uma “irmã”, com o mesmo nome, mas sede no Luxemburgo. A das Baamas ficou com a dívida, a do Luxemburgo “com as empresas boas”, explica Mariana Mortágua, no seu blogue Disto Tudo, (https://distotudo.wordpress.com/ ) criado para explicar o caso ao grande público. “Foi então que a ES Resources Luxemburgo passou a chamar-se Rioforte. A ideia mantinha-se: vender a Rioforte a investidores privados e, com esse dinheiro, pagar a dívida do grupo. Mas o objectivo nunca foi cumprido: a Rioforte não foi vendida, e a ES Resources Baamas continuou a acumular dívida.” No final: o GES tinha 8900 milhões de euros de passivo. Estava falido. E isso era conhecido em todas as sedes institucionais.

O Governo sabia. Ulrich informou o ministro das Finanças da altura, Vítor Gaspar, em Maio ou Junho de 2013. Pedro Queiroz Pereira, sócio desavindo da família Espírito Santo, informou o Banco de Portugal, no primeiro semestre de 2013. José Maria Ricciardi informou Pedro Passos Coelho, seu amigo, em São Bento, em Outubro de 2013. Porém, não só Ricardo Salgado se manteve à frente do grupo até 19 de Junho de 2014, como a dívida do grupo continuou a ser “reciclada” dentro e fora do BES, arrastando alguns pesos-pesados do PSI20. É o caso da PT…

Em Abril de 2014, a PT trocou o seu investimento em dívida da ESI, por conselho de Ricardo Salgado, em 900 milhões de dívida da Rioforte (igualmente falida). É deste processo que Zeinal Bava não guarda memória. Henrique Granadeiro, o outro responsável da PT, guarda: “Isto destruiu a minha carreira. Fui injustiçado. Alguém devia ter-me dado sinais. Não foi a PT que fez cair o BES. Foi o BES que fez cair a PT.”

É este hiato temporal, entre o conhecimento dos graves problemas do GES e a medida de resolução (tomada por Carlos Costa no dia 3 de Agosto de 2014), que se torna difícil de compreender. Sobretudo, a inacção dos reguladores, do Governo e da própria troika, que monitorizava as contas relevantes do país. Carlos Moedas era o responsável pela ligação entre o executivo e a troika, neste período. Aos deputados deu uma resposta que ajuda a explicar o arrastamento do problema: "Depreendi que a situação poderia ser mais preocupante do que se supunha pelo que admiti que pudesse haver implicações para o processo de saída do programa em que Portugal se encontrava. Recorde-se que o programa tinha acabado formalmente no dia 17 de Maio, mas ainda não tínhamos obtido aprovação formal na última avaliação do programa por parte do Fundo Monetário Internacional."

Ou seja, enquanto a troika se manteve em Portugal, Ricardo Salgado pôde manter-se no GES, porque a sua saída criaria um mal maior? Maria Luís Albuquerque não partilha desta versão do actual comissário europeu. Mas a oposição, PS, BE e PCP, incluem o Governo nos responsáveis pela forma como se desintegrou o maior grupo privado português. A lista de Pedro Nuno Santos, coordenador dos deputados do PS, é esta: “Desde logo, em primeiro lugar, o presidente da comissão executiva do BES, toda a sua equipa e restantes administradores, auditor externo, supervisores, Banco de Portugal, CMVM, Instituto de Seguros de Portugal, troika e Governo.”


Agora que os trabalhos da comissão de inquérito se tornam menos públicos, com o fim das audições, os holofotes centram-se no meticuloso trabalho realizado pela Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual do Parlamento. Nas mais de 4000 páginas transcritas e nos mais de 46 gigabites de informação recolhida está a chave para os enigmas deste caso. E o antídoto para qualquer “bava” que tolde a memória colectiva deste caso.

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