sexta-feira, 20 de março de 2015

De volta ao Parlamento, Salgado recusou pedir desculpa por “esta desgraça toda” / A misteriosa ES Enterprise levou o ex-banqueiro a um embaraçoso silêncio


De volta ao Parlamento, Salgado recusou pedir desculpa por “esta desgraça toda”
CRISTINA FERREIRA e PAULO PENA 19/03/2015 - PÚBLICO

Acossado pelos deputados e quase em negação, o ex-banqueiro rejeitou pedir desculpas. Acusou Carlos Costa de “manifesta falta de isenção” e Passos Coelho de desconhecer as regras.

Ricardo Salgado entrou na sala da comissão de inquérito às 15h08, precedido pelo metralhar dos obliteradores das máquinas fotográficas. Veio acompanhado por dois advogados e um consultor de comunicação. Menos sorridente do que da primeira vez que aqui esteve, há quatro meses, cabisbaixo, trazia uma longa declaração de 54 páginas.

Antes, Fernando Negrão, o presidente da comissão, deixou um recado: “Estamos aqui a fazer a repetição de uma audição, depois de quatro meses de outras audições. Não estamos aqui para acusar ninguém, nem para julgar ninguém. É nosso dever apurar os factos. E para isso, e especialmente nesta repetição, nós precisamos de perguntas claras e de respostas esclarecedoras”.

Ao longo de quase uma hora, Salgado começou por elogiar a comissão e os seus trabalhos “muito relevantes”. Mas cedo optou por um tom de desilusão. “Hoje, que perdi o que foi a minha vida de trabalho de mais de 40 anos, só quero lutar pela minha honra e da minha família, explicando o que fiz.“ Com recados para aqueles que o “rodearam com honras e solicitações” e agora “fingirão” não o conhecer, o antigo líder do grupo e do Banco Espírito Santo dedicou-se, então, a desmontar as acusações que lhe são feitas na auditoria forense realizada pela Deloitte para o Banco de Portugal (BdP).

Uma auditoria na qual Salgado se negou a participar, alegando, em resposta ao deputado Pedro Nuno Santos, do PS, que ficou “profundamente chocado com o julgamento sumário do governador do BdP”, logo no dia 3 de Agosto de 2014. Nessa altura, disse, apercebeu-se que “isto era um julgamento prévio”. Essa queixa foi recorrente, ao longo de várias horas de audição. Esta edição fechou seis horas após o início dos trabalhos. Salgado ainda respondia à primeira ronda (de três) dos deputados. Pelas 22h, a comissão foi interrompida temporariamente. Ricardo Salgado dirigiu-se ao bar da Assembleia da República e pediu uma mini e um prego.

No decorrer da primeira parte da audição, não faltaram os apelos à concisão. Nem, sequer, os sinais explícitos de que Salgado não seria tratado com a cortesia que, ainda assim, obteve na sua primeira audição nesta comissão. Logo no início das suas perguntas, Carlos Abreu Amorim, do PSD, considerou que a intervenção inicial do ex-banqueiro falhara “lamentavelmente” a ocasião por não ter sido “capaz de fazer o que é mais importante”: “Pedir desculpas aos muitos que confiaram em si”. Ainda antes de dar a palavra ao depoente, Amorim citou João Duque, que chamou “escroque da pior espécie” a Salgado, isto depois de lhe atribuir um doutoramento honoris causa, pelo ISEG, de que se arrepende. Salgado acusou o upper-cut e o gancho.

“Com as suas declarações, sinto-me a ser apresentado perante um tribunal. O senhor está a ir para além daquilo que é considerável em termos de justiça”, repreendeu Salgado, que resolveu então citar um “poeta português muito importante, Fernando Pessoa: Pedir desculpa é pior do que não ter razão.” A citação pode até ser apócrifa, mas Salgado não pediu desculpas. As perguntas continuaram. E as repostas repetiram a tese conhecida: “Não dei instruções para a ocultação da dívida” (negando o que Francisco Machado da Cruz, o contabilista, dissera). Contabilista esse que, afinal, nunca foi convidado a mudar de país. E que detinha o segredo de um buraco financeiro que nem a família Espírito Santo conheceria. “Ninguém na família sabia exactamente o que se passava, se não não tínhamos investido 70 milhões do nosso próprio dinheiro…”

Para Salgado, não foi a dívida extraordinária da ESI (9000 milhões de euros) que fez desabar o grupo e o BES. “Não foi isso que fez perder a confiança no BES. Se não tivesse havido confiança não havia aumento de capital. Pode ter a certeza disso.” Ou seja, o GES não conseguiu salvar-se porque faltou “tempo” ao plano de recuperação. E o BES foi levado na enxurrada sistémica porque o BdP ignorou os vários avisos.

“Eu avisei três vezes o BdP do risco sistémico. Incluindo a carta de 31 de Maio, que circulou por todos os poderes políticos, incluindo o Presidente da República e o primeiro-ministro”, afirmou. Aliás, sobre Pedro Passos Coelho, Salgado fez questão de clarificar duas coisas: “O primeiro-ministro diz que eu me fui queixar do governador. Não foi isso que lá fui fazer. Eu fui lá queixar-me do eminente colapso do grupo”. O outro reparo a Passos foi bastante mais sarcástico. No encontro que manteve com o primeiro-ministro, em Maio de 2014, este ter-lhe-á sugerido que negociasse "com os credores”. Ora, para Salgado, isso significa que o primeiro-ministro "não sabia da existência do ring-fencing" que inviabilizava uma solução que envolvesse os credores.

O ring-fencing é mais uma daquelas expressões recorrentes que servem para afastar a atenção. No fundo, a expressão descreve uma ideia simples: “muralha” ou “vedação”, com a qual o BdP procurou salvaguardar o BES dos riscos do GES. Esse foi, para Salgado, o derradeiro problema. “O ring-fencing foi totalmente cumprido.” Protestos do deputado Pedro Nuno Santos, do PS. “Oh senhor deputado... Tenha paciência. Foi exactamente por causa do cumprimento do ring-fencing que o grupo colapsou.”

Um outro conjunto de respostas que impacientou Pedro Nuno Santos teve a ver com a PT. Salgado: “Vamos a ver se eu consigo serenar para lhe dar uma explicação.” Não deu, exactamente. Explicou que Bava e Granadeiro sabiam dos investimentos da tesouraria da PT no GES e que os sócios brasileiros da Oi também tinham conhecimento, o que fez da revisão dos termos do acordo uma “negociação desastrosa”. Como “desastrosa” foi a negociação do Novo Banco sobre os créditos do BESA. Mas sobre as quais Salgado só falou agora, quase um ano depois.

"Para mim custa-me. Para mim chamar ao BES o banco mau é como darem-me uma facada." A frase, que surgiu numa resposta ao deputado Manuel Tiago, do PCP. Angola, ES Enterprise, processos fiscais, tudo foi levantado, mais uma vez, perante uma testemunha que falava num tom baixo, sem a garra que ainda exibia na última audição: “Acredito que seja difícil para vós terem ideias mais positivas depois desta desgraça que aconteceu…", afirmou Salgado.

A misteriosa ES Enterprise levou o ex-banqueiro a um embaraçoso silêncio
CRISTINA FERREIRA e PAULO PENA 19/03/2015 - 23:08

“Não fazia parte do nosso organograma, é uma falha”, reconheceu Salgado na comissão de inquérito.

O deputado Carlos Abreu Amorim já estava perto do fim do seu tempo quando lançou a pergunta: “O que é a ES Enterprise, onde está sedeada?”. Ricardo Salgado ensaiou uma resposta: “Não é um saco azul, senhores deputados”, começou por dizer o ex-banqueiro.

A resposta continuou, confusa: “Nós viemos de fora para dentro. O grupo tinha estruturas financeiras que estavam nos EUA, na Suíça, em Paris e no Dubai, e quando entrámos nas privatizações em Portugal tivemos que criar uma empresa de serviços partilhados.” No fundo, explicou Salgado, a ES Enterprise pagava serviços dentro do grupo, desde que prestados no exterior.

Porém, como o PÚBLICO já noticiou, era também uma “empresa-fantasma”. “Não fazia parte do nosso organograma, é uma falha”, reconheceu Salgado. Amorim persistiu: “E onde é que estava sedeada?” Salgado olhou para os seus dois advogados, coçou a cabeça, murmurou. “Estava... No Luxemburgo, julgo.” Não estava. Era na Suíça. O contabilista do GES, Machado da Cruz, confirmou na comissão de inquérito ter sido administrador da ES Enterprise, detida pela ESI, quando estava na Suíça. Garantiu, porém, nunca ter olhado para um balanço, não ter tido conhecimento de operações, nem assinado, que se recorde, um único documento.

A empresa pode ter actuado em várias zonas geográficas: Portugal, Suíça, Angola, Brasil e Venezuela e, nos últimos anos, movimentado cerca de 300 milhões de euros. José Manuel Espírito Santo, um dos membros do Conselho Superior do GES, e da comissão executiva do BES, garantiu aos deputados da comissão parlamentar de inquérito que nunca tinha ouvido falar na ES Enterprise até ao PÚBLICO divulgar a sua existência.


O mesmo disse o presidente do BESI, José Maria Ricciardi: “Nunca tinha ouvido falar da empresa”. O braço direito de Ricardo Salgado, o secretário do conselho superior do GES, José Castela, assegurou que "nunca assinou" nenhum documento, desconhecendo mesmo qual seria o objecto social da sociedade. Por seu turno, o presidente da Escom (do GES), Hélder Bataglia, acabou por admitir ter tido "um contrato” com a ES Enterprise "de pagamentos de comissões" por negócios na área da energia. Explicou: “Sempre pensei que fosse uma empresa de investimento do GES”.

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