domingo, 29 de março de 2015

As eleições que podem tornar a Frente Nacional mais nacional / França, o “grande problema” da Europa / Jorge Almeida Fernandes

“O debate em torno de um “conceito nebuloso e vazio de sentido”, como notava a revista Le Point, corre o risco de perder de vista o essencial que alguns analistas observam. Trata-se de “um resultado muito bom para a FN, que conseguiu uma vitória dupla: por um lado, continua a sua dinâmica e melhora o resultado das municipais. Por outro, o esforço investido no último ano para encontrar candidatos voltou a dar frutos este ano, uma vez que vários se apresentaram às duas eleições”, diz ao Le Figaro o politólogo Jean-Yves Camus.”

As eleições que podem tornar a Frente Nacional mais nacional
JOÃO RUELA RIBEIRO 29/03/2015 – PÚBLICO

O partido de extrema-direita não é o maior do país nem precisa. Le Pen espera conseguir o controlo dos primeiros departamentos, mas, mais do que isso, pretende prosseguir a sua estratégia de expansão territorial.

A segunda volta das eleições departamentais na França, este domingo, pouco fará mais do que confirmar as tendências evidenciadas há uma semana e que são um retrato do clima política no país. O centro-direita deverá alcançar a vitória na maioria dos duelos, a Frente Nacional vai obter os seus primeiros departamentos e o Partido Socialista irá confirmar mais um descalabro eleitoral, almejando apenas mitigar as derrotas.

Em política tão importantes como os resultados de eleições são os seus significados e a sua simbologia. Nesta segunda volta das departamentais francesas, quase todo o relevo fica do lado simbólico, uma vez que em termos práticos este nível de representação territorial tem pouco poder e corre mesmo o risco de ser extinto no futuro.

Em jogo estão 1905 cantões que vão eleger os seus representantes nos 101 conselhos departamentais da França metropolitana e nos territórios ultramarinos. De uma forma geral, será a direita a grande vencedora na contagem final, com as sondagens a apontarem para vitórias dos candidatos da União para um Movimento Popular (UMP) e dos centristas da UDI em duelos com o PS ou com a FN. Os socialistas devem beneficiar nos confrontos triangulares com o centro-direita e com a FN, conseguindo recolher os votos dispersos pelos pequenos partidos de esquerda na primeira volta, segundo uma sondagem do instituto Odoxa. Com o sistema eleitoral contra si, a extrema-direita pode, contudo, depositar esperanças nos confrontos directos com o PS, beneficiando dos votantes na UMP na primeira volta.

A natureza das eleições departamentais dificulta qualquer análise baseada em extrapolações para o nível nacional. Quando os resultados da primeira volta foram conhecidos, uma das conclusões mais imediatas foi a do “falhanço” da FN em emergir como “o primeiro partido da França” – um epíteto lançado pela própria Marine Le Pen. O primeiro-ministro, Manuel Valls, com poucos motivos para sorrir perante mais um débacle eleitoral socialista, congratulou-se por a FN não ter conseguido esse objectivo.

O debate em torno de um “conceito nebuloso e vazio de sentido”, como notava a revista Le Point, corre o risco de perder de vista o essencial que alguns analistas observam. Trata-se de “um resultado muito bom para a FN, que conseguiu uma vitória dupla: por um lado, continua a sua dinâmica e melhora o resultado das municipais. Por outro, o esforço investido no último ano para encontrar candidatos voltou a dar frutos este ano, uma vez que vários se apresentaram às duas eleições”, diz ao Le Figaro o politólogo Jean-Yves Camus.

A primeira volta já foi considerada histórica para a FN, que conseguiu, desde logo, eleger oito conselheiros departamentais, quando tinha apenas dois. Mas o grande prémio para Marine Le Pen deve vir este domingo, com a conquista dos primeiros departamentos. A imprensa francesa já não se pergunta se a extrema-direita irá conseguir um departamento, mas sim quantos. No Var, no Sudeste, a FN alcançou o melhor resultado, 38,9%, venceu o cantão de Fréjus – cidade que governa há um ano – e foi o partido mais votado em 15 dos 22 cantões. No entanto, a maior parte dos duelos será frente à coligação UMP/UDI, que pode beneficiar dos votos da esquerda.

No Aisne, no Nordeste, região tradicionalmente de esquerda, o grande número de duelos a tripartidos causa alguma incerteza e a FN, que já venceu um dos cantões à primeira, pode ter aqui a primeira conquista departamental.

De regresso ao Sul, o Vaucluse também pode fazer Marine Le Pen sorrir. A FN venceu em dez dos 17 cantões num departamento que já começa a ser definido como um bastião nacionalista. Marion Maréchal-Le Pen (sobrinha de Marine, neta do fundador do partido, Jean-Marie), foi aqui eleita em 2012 para a Assembleia Nacional, tornando-se na mais jovem deputada da República. A disputa pelos lugares na assembleia departamental será cerrada e cada voto vai contar. Por causa disso, a FN optou mesmo por desistir num dos cantões em favor de outro partido de extrema-direita, a Liga do Sul, fundado por um antigo dirigente da FN, com o objectivo de impedir uma vitória socialista.

Uma longa caminhada
A conquista dos primeiros departamentos serve o propósito de longo-prazo da FN. Ao mesmo tempo que Marine Le Pen se lança numa longa caminhada com a meta em 2017, nas eleições presidenciais, vai, pelo meio, construindo um verdadeiro partido.

A FN era encarada como uma formação que canalizava o protesto, um voto para o eleitorado descontente com a alternância entre o PS e a UMP, mas que não se apresentava como uma alternativa verdadeiramente viável em termos de governação. Praticamente inexistente a nível local – com a excepção das três autarquias conquistadas em 1995 –, a FN cumpre o objectivo de implantação desde baixo.

De volta à política, Nicolas Sarkozy saudou a vitória da UMP na primeira volta e espera agora a confirmação da conquista da larga maioria dos departamentos franceses. Porém, se o objectivo eleitoral pode ser cumprido, o ex-Presidente corre o risco de aprofundar a desunião no partido que lidera. A defesa de uma aproximação da UMP à direita, adoptando temas muito próximos da FN na tentativa de atrair esse eleitorado, é contestada por uma facção que pretende maior moderação programática. O popular presidente da câmara de Bordéus, Alain Juppé, encabeça esta oposição interna e defende uma aliança com o partido centrista MoDem até às eleições presidenciais.

A Frente Republicana
A fricção interna estende-se também à estratégia quanto aos apoios eleitorais para este domingo. As directrizes nacionais são conhecidas como “ni-ni” (nem nem), ou seja, em caso de duelo entre a esquerda e a FN, os candidatos da UMP não devem promover apoio a nenhuma das listas. A posição de Sarkozy quebra a tradição da “Frente Republicana”, cujo maior efeito reverteu precisamente a favor de um antigo candidato presidencial da UMP, Jacques Chirac, que bateu Jean-Marie Le Pen na segunda volta das presidenciais de 2002, beneficiando do apoio da esquerda.

Não é seguro, porém, que a estratégia “ni-ni” seja seguida por todos os candidatos da UMP. Um dos casos é o do senador e autarca de Nîmes, Jean-Paul Fournier, que apelou publicamente ao voto na esquerda nos sete confrontos entre o PS e a FN no departamento do Gard.

A esquerda, que governava cerca de 60 departamentos, pode ver a sua expressão reduzida a pouco mais de vinte após este domingo. Uma das derrotas mais simbólicas ocorreu no Nord, o mais populoso do país e um bastião socialista, onde o PS não conseguiu chegar à segunda volta em 27 dos 41 cantões, e que representa o descrédito da esquerda junto do seu eleitorado tradicional, cada vez mais atraído pelo programa da FN.


A confirmação de um quarto revés eleitoral para o PS desde que François Hollande chegou ao Eliseu não deve, porém, traduzir-se em mudanças assinaláveis ao nível nacional. A facção mais à esquerda no PS insiste numa reintegração dos ecologistas no Governo para fazer face ao novo cenário de tripartidarismo, mas com o primeiro-ministro Manuel Valls, símbolo da direita no seio do PS, uma remodelação desta magnitude é vista como improvável.


França, o “grande problema” da Europa

Nas europeias, a França foi o único país que colocou em primeiro lugar um partido que defende a saída da UE
Jorge Almeida Fernandes / 29-3-2015 / PÚBLICO

A França tornou-se o “grande problema” da Europa, diz o antigo primeiro-ministro italiano Mario Monti. Afirmou ao diário britânico The Telegraph na véspera da primeira volta das eleições departamentais: “Nos últimos anos vimos a França retroceder em termos de resultados económicos, em termos do cumprimento das regras europeias e, sobretudo, em termos da opinião pública doméstica: que se está a voltar cada vez mais contra a Europa.”
Preocupam-no as campanhas antieuro na Itália, em Portugal ou na Grécia. Mas o caso francês tem outra dimensão. Foi a França e não a Alemanha que impôs o euro, a que os alemães aderiram sem entusiasmo para obter luz verde para reunificar as duas Alemanhas. Um quarto dos franceses votam numa formação marcadamente antieuro, a Frente Nacional (FN), enquanto parte da elite política — à esquerda e à direita — cultiva o eurocepticismo em vários tons.
“A França é o grande problema da União Europeia, porque toda a sua construção teve como alicerce uma sólida entente franco-alemã. Sem isto, a Europa terá um triste destino. Vemos que este forte eixo já não é tão forte como antes.”
Monti responsabiliza ainda os dirigentes europeus pelo crescimento do populismo antieuro: “Os líderes políticos em muitos Estados estão obcecados com a próxima eleição doméstica e pouco fazem para ajudar a população a ver as vantagens da construção europeia.”
Nas eleições europeias de 2014, a França foi o único país europeu que colocou em primeiro lugar um partido que defende abertamente a saída da UE. “O outro país do eurocepticismo, ao lado da Grã-Bretanha, é agora a França”, assinala o correspondente do Libération em Bruxelas. A responsabilidade é também dos cidadãos: “Foram eles quem enviou para Estrasburgo 24 deputados FN (em 74 a que a França tem direito).”
O Financial Times equacionou assim o problema: “O elo fraco da Europa são os eleitores.” É o voto “em partidos anti-sistema que rejeitam o consenso europeu sobre o modo de preservar a moeda única”. Protestam contra a austeridade ou a degradação económica, contra o imigrante ou o estrangeiro em geral, contra a insegurança ou contra a “casta política”.
Este é o pano de fundo para a avaliação dos resultados da segunda volta das eleições francesas que hoje terá lugar.
O tripartidarismo
A ascensão da FN de Marine Le Pen criou uma nova realidade: o tabuleiro político passa a ser formado por três blocos concorrentes, tornando-se tripartidário, o que desestabiliza os equilíbrios tradicionais da V República. A lógica bipartidária — a alternância entre o PS e a UMP (direita) — apenas resiste na medida em que o sistema eleitoral da V República (escrutínio uninominal maioritário em duas voltas) implica a sub-representação da extrema-direita por impossibilidade de fazer acordos de desistência.
O fenómeno não é inédito na V República. Nos anos 196070, o Partido Comunista (20% dos votos) ocupava a “função tribunícia” que depois passou a ser exercida pela FN. Esse mapa partidário garantia a hegemonia da aliança entre gaulistas e liberais, condenando a esquerda à oposição. Esta lógica foi alterada por François Mitterrand, que “refundou” o PS como partido vocacionado para vencer presidenciais — fez uma viragem à esquerda e impôs uma aliança aos comunistas. Resultado: os socialistas puderam vencer presidenciais e legislativas e o PCF foi perdendo os seus eleitores.
O tripartidarismo de hoje tem uma característica: “As três forças que dominam a paisagem política não têm qualquer intenção de governar em conjunto. Nenhum acordo é possível. E nenhuma pode ser maioritária por si só”, sintetizou o Monde. Numa situação “normal” poderia haver alianças e combinações entre duas forças para constituir coligações e maiorias parlamentares. Tal não sendo possível, emerge um quadro instável e altamente conflitual.
“O tripartidarismo é um sistema transitório”, diz o analista Jerôme Fouquet, do instituto IFOP. “O nosso sistema político foi concebido para uma organização bipolar: PS e aliados de um lado, a direita e os centristas de outro. Uma FN a um nível estruturalmente muito elevado significa a marginalização mecânica e sistemática do PS ou da UMP na segunda volta.”
“Por outro lado, as contradições e as clivagens sobre a Europa e sobre as reformas tornam-se demasiado fortes dentro de cada bloco.” Haverá “choques muito violentos” nas sucessivas eleições que poderão levar a uma recomposição do mapa partidário, conclui Fouquet. Estas eleições departamentais, em que a UMP apareceu aliada aos centristas e a FN consolidou a sua representação, vão traduzirse numa larga vitória da UMP e numa pesada derrota do PS, com escassos aliados e desgastado pela concorrência da extremaesquerda e de ecologistas.
Haverá crescente tensão entre a “tripartição” do voto e a bipolarização do poder imposta pelo sistema eleitoral. Para Marine Le Pen, o objectivo é provocar a implosão da UMP para conquistar parte do seu eleitorado. Por isso denuncia permanentemente o “sistema UMPS” cuja destruição seria a chave da possibilidade de acesso ao poder. O teste será feito nas presidenciais de 2017.
O desafio de Le Pen
O PS ficou em terceiro lugar tanto nas eleições europeias como nas departamentais. A reprodução deste quadro em 2017 significaria a eliminação de François Hollande ou outro candidato socialista na primeira volta. Aconteceu uma vez, em 2002, quando o socialista Lionel Jospin foi eliminado por JeanMarie Le Pen (que teve 17% dos votos). Foi um “acidente”. Hoje, as circunstâncias mudaram.
Num editorial dramático, o Monde apelava ao voto nos candidatos da UMP ou do PS contra a FN. “[Em 2002], Jean-Marie Le Pen não visava a vitória, contentava-se em fazer campanhas presidenciais sem real estratégia. Depois da passagem do testemunho à filha, em Janeiro de 2011, a situação é radicalmente diferente: Marine Le Pen quer conquistar o poder.”
Poucos crêem na sua vitória. A ameaça é outra. “Em 2017, estão reunidas todas as condições para que Marine Le Pen se qualifique ou fique muito próxima de se qualificar para a segunda volta”, anota o politólogo Bruno Cautrès. “Depois, o candidato da UMP ou do PS deverá reunir os eleitores para vencer a segunda volta. Se Marine não se qualificar para a segunda volta, poder-se-á dizer que a lógica do bipartidarismo resistiu, pelo menos temporariamente.”
As presidenciais estimulam a bipolarização. A eliminação do candidato da UMP ou do PS significaria um sismo político. Previne o historiador Jean Garrigues: “A força política eliminada em 2017 estará provavelmente condenada ao estilhaçamento.”


Monti terá razão: a França é a grande dor de cabeça da Europa.

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