segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A cedência grega tirou o tapete ao Governo / MANUEL CARVALHO


A cedência grega tirou o tapete ao Governo
MANUEL CARVALHO 22/02/2015 / PÚBLICO

Ainda estamos por saber ao certo que posição teve a representante do Governo português na reunião do Eurogrupo que reestabeleceu as pontes de negociação do a Grécia. O desmentido “categórico” de ontem tem de ser contrastado com as notícias de vários órgãos de comunicação social da Grécia nas quais Portugal e a Espanha aparecem a bloquear um acordo e com as conferências de imprensa quer do ministro das Finanças grego, quer do presidente do Eurogrupo. Mas o que se sabe destes dias tensos em Bruxelas é mais do que suficiente para se concluir que, politicamente, o fim do isolamento grego deixa Passos Coelho e Paulo Portas sem discurso nem doutrina. Se até à semana passada o estilo e a bazófia de Alexis Tsipras e de Yanis Varoufakis serviam ao Governo para exaltar os méritos da sua resignação e conservadorismo, a simples viabilidade de um discurso alternativo (mesmo que, como aconteceu, improfícuo) tornam a sua apologia da rigidez para com a austeridade na Grécia numa obsessão politicamente comprometedora.

Por estes dias, a ministra das Finanças apareceu e reapareceu ao lado de Schäuble, apresentou-se como a guarda avançada da intransigência alemã e contribuiu para essa nova mania de comparar as nações a empresas ao dizer a um jornal alemão: "Quando peço um empréstimo ao meu banco, tenho de comprometer-me a reembolsá-lo e tenho de dar garantias, é assim que as coisas funcionam”. Se meio mundo anda a censurar a Alemanha pela sua ortodoxia financeira, por acreditar que os desequilíbrios financeiros dos estados se corrigem apenas pelo aperto do cinto, por nada fazer para fomentar a procura interna na Europa reduzindo um pouco os seus gigantescos excedentes comerciais, as autoridades portuguesas dizem o contrário. Dizem que a vida dos povos e o futuro da Europa se cinge a um bom balanço em meia dúzia de folhas de cálculo e a regras espartanas na política fiscal. Fazem-no por convicção, seguramente com coerência, mas o que está em causa é mais do que princípios: é uma ordem no relacionamento político entre os vulneráveis e os fortes da Europa que o tom desafiador dos gregos ameaça pôr em causa.

Nessa construção, o que conta até hoje é o "sim" e o "não", sem que haja lugar ao "talvez" das alternativas. Passos usou e abusou desse jogo e, percebe-se, jamais poderia tolerar que o governo de um país sob a égide da troika pudesse rasgar os acordos do passado e, num golpe de mágica, ser contemplado com bondades e concessões a que nem ele nem os portugueses tiveram direito. O que se passou ao longo desta semana ficou, porém, muito para lá dos perdões de dívida, da recusa de qualquer tipo de condicionalidade para obter financiamento das entidades da troika ou até da oposição a qualquer tipo de supervisão europeia. Por muito que o discurso panfletário típico do radicalismo decrete o fim da austeridade em Atenas, a verdade é outra. Tsipras e Varoufakis tiveram de ceder em toda a linha para poderem almejar a receber ajuda financeira. E ao cederem, retiraram a Passos o racional da sua argumentação. A Grécia, afinal, fora capaz de protestar, de exigir, de reclamar, de se pôr em bicos de pés e, no final do dia, não foi votada ao ostracismo nem ficou numa posição pior do que aquela em que estava.

Pelo contrário, com o evoluir da pressão e com a sua crescente disponibilidade para recuar nas suas propostas estapafúrdias, a Grécia começou a receber simpatia, encorajamento e apoio velado de alguns Estados-membros e principalmente da Comissão Europeia. Quando, na terça-feira, Jean-Claude Juncker se dispôs a correr o risco de fazer figura de "estúpido" para admitir que a Europa pecou contra a dignidade de Portugal, da Grécia e, até certo ponto, da Irlanda, estava a enviar uma mensagem política de enorme gravidade para a Europa e para os países que estão ou estiveram em processos de ajustamento. Pela primeira vez em muitos anos, o presidente da Comissão Europeia destoou da Alemanha e do seu grupo e colocou-se ao lado do elo mais fraco. A mensagem tinha um efeito terrível para a colagem de Passos Coelho à intransigência alemã. Colocava o Governo português no triste papel de vítima da síndrome de Estocolmo, quando as vítimas de apaixonam pelos seus algozes.

A turbulência que de imediato se fez sentir em sede do Governo e entre os partidos da coligação é testemunho dessa incomodidade. Logo a seguir às palavras de Juncker, o Governo pareceu mais um castelo de cartas do que um bloco sólido mobilizado por um projecto. O CDS e o PSD digladiaram-se num jogo de empurra para ver quem ganhava mais ou perdia menos nesta súbita sentença contra a maravilha da austeridade. E não, não se tratou apenas de normais divergências de interpretação ou de opinião: aquilo a que assistimos nas contradições entre as declarações sociais-democratas e as centristas foi à tentativa do PSD de segurar as rédeas do discurso oficial e ao esforço do CDS em as rasgar. No exercício, foi clara a estratégia de Paulo Portas e dos seus homens em vestir a pele do polícia bom.

A reacção do ministro Marques Guedes teve como claro propósito condicionar as perdas, ao afirmar que "nunca a dignidade de Portugal foi beliscada, quer pela troika quer por algumas das suas instituições", pelo que as declarações de Juncker eram apenas "infelizes". Portas e o seu líder parlamentar, Nuno Magalhães, tentaram, pelo contrário, dizer que Juncker tinha razão, o que, implicitamente, deixava Passos sozinho a fazer a apologia de uma política indigna para os portugueses. Depois, como se a cacofonia entre o primeiro-ministro e o seu vice não bastassem, Rui Machete encostou-se a Portas e “interpretou” as declarações de Juncker como “um desejo de facilitar as coisas e de reconhecer que houve aspectos negativos”, dando como exemplo “as censuras que a troika fez ao aumento do salário mínimo de que Portugal precisou”. Logo a seguir, recorrendo a uma terminologia que se costuma usar após o final das guerras, o ministro chegou ao ponto de admitir que “eles”, os da troika, “devem-nos reparações”. Reparações? Mas não disse Maria Luís Albuquerque que as exigências da troika são tão simples e fáceis de entender como as regras de um empréstimo bancário?


Depois de dias em que parecia ter cavalgado a crise grega a seu favor, a rápida inversão da estratégia grega deixou Passos Coelho e os seus ministros sem capacidade de reagir. Não lhes basta agora serem mimados por Wolfgang Schäuble ou por Angela Merkel. Quando um parceiro do euro se dispõe a compromissos com tantas cedências como as que a Grécia exibiu, não há outra forma de reagir senão abraçar essa atitude e preservar a unidade. “Portugal, desde que entrou para a União Europeia esteve sempre na formação dos consensos necessários”, lembrava esta semana Jorge Sampaio. A turbulência grega só agora começou, mas espera-se que Portugal não apareça na Europa como o paladino das causas alemãs. Um roto a dizer mal do esfarrapado é, como se sabe, um episódio sempre deplorável.

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