sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O primo que sabia de menos

RESPONSABILIDADE ZERO Ao longo de quatro horas e meia, Manuel Fernando Moniz Galvão Espirito Santo Silva, o homem que durante uma década esteve no topo da estrutura não-financeira do grupo Espírito Santo, não assumiu qualquer responsabilidade /  FOTO TIAGO PETINGA /LUSA

O primo que sabia de menos
Manuel Fernando Moniz Galvão Espirito Santo Silva, ex-chairman da Rioforte, não viu e não sabia o que se passava no grupo. Também não sabia o que se ia passando nas suas empresas. E o que assinou, assinou "à confiança".

Filipe Santos Costa |
20:09 Terça feira, 16 de dezembro de 2014 / EXPRESSO

Eu não sabia", "não me lembro", "eu nunca imaginei", "não sei", "não acompanhei", "nunca supus", "nunca participei", "nunca tive qualquer informação", "não lhe sei dizer", "não estava no meu âmbito", "nunca tratei", "não era da minha competência ou responsabilidade", "não sou um financeiro", "nunca participei", "nunca intervim", "nunca fui membro", "nunca tive funções executivas", "agora não me recordo", "desconheço", "estava a par, mas não com detalhe", "não era do meu pelouro", "eu não estava lá no dia-a-dia", "não faço comentários", "que eu saiba", "não sei", "não tenho aqui os dados", "não sei responder", "não sei dizer neste momento", "eu não me recordo bem", "só me dei conta depois", "ainda não conhecemos", "estamos a investigar o que aconteceu", "desconhecemos", "foi alheio ao meu conhecimento", "não sei exatamente quem", "ficámos surpreendidos", "eu não acompanhei", "eu não era responsável", "acho muito estranho", "não acho normal", "não estive envolvido", "eu não tinha conhecimento", "nunca assisti", "eu não tinha nenhuma relação"...

Não, nunca, nada, ninguém... Népia. Nem uma suspeita, nem uma revelação, nem uma novidade para amostra. Ao longo de quatro horas e meia, Manuel Fernando Moniz Galvão Espirito Santo Silva, o homem que durante uma década - e até ao descalabro final - esteve no topo da estrutura não-financeira do grupo Espírito Santo, precisamente o lado pelo qual o império começou a desmoronar-se, não assumiu qualquer responsabilidade e praticamente não trouxe qualquer informação nova aos trabalhos do inquérito parlamentar que investiga o fim do banco e do grupo controlado pela família Espírito Santo.

Primo de Ricardo Salgado, primo de José Maria Ricciardi, membro do conselho superior do grupo em representação do ramo Moniz Galvão (o que tinha mais peso na estrutura de topo do grupo, com cerca de 20% da Espírito Santo Control), antigo vice-presidente da Espírito Santo Resources, depois chairman da ES Resources e depois ainda chairman da holding que lhe sucedeu, a Rioforte, Manuel Fernando não sabia, não ouviu, não fez. Nalguns casos, assinou - mas tratou de garantir aos deputados que assinou porque lhe davam para assinar. "Exclusivamente com base na absoluta confiança."

Na sua declaração inicial, o ex-chairman da Rioforte começou por definir o que não sabia e o que não fez. "Não sou um financeiro e nunca fui membro das Comissões Executivas nem do BES, nem da ESFG nem da Rioforte. Desde 2005 que as minhas funções no grupo eram apenas 'não executivas', embora acompanhasse como chairman a estratégia da Rioforte". Nas suas funções de administrador não executivo do BES e da ES Financial Group, "além de nunca ter tido quaisquer funções executivas no BES, nem na ESFG, nunca participei nas comissões executivas, e nunca intervim, seja de que forma for, na gestão do banco ou na definição da sua estratégia."

Não sabia que uma parte do passivo da ES Internacional não estava refletido nas contas - sabia do "relevante endividamento", mas "nunca supus, e tanto quanto me apercebi o mesmo sucederia com a generalidade dos demais administradores, que tal endividamento fosse tão elevado". Aliás, frisou, "na ESI, era um entre 16 administradores".

Salgado controlava toda a tesouraria
Tudo o que tinha a ver com tesouraria era controlado por Ricardo Salgado, que "era muito competente" e "mereceu sempre plena confiança de todos". "O grupo tinha uma tesouraria central que era gerida pelo dr. Ricardo Salgado e José Castella, com o apoio de Francisco Machado da Cruz" - o famoso contabilista que, percebeu-se pelas palavras de Manuel Fernando, dificilmente teria manipulado sozinho as contas da ESI. "É um desvio muito grande, acho muito estranho."

Porém, conforme a audição se desenrolava, foi ficando claro que, mesmo nos assuntos em que devia ter feito, ou pelo menos, ter sabido alguma coisa, não fez e não soube. Todas as grandes questões que envolveram a Rioforte - que desde 2009 concentrava a área não-financeira e se preparava para ser a cúpula da estrutura do universo Espírito Santo - aparentemente lhe passaram ao lado. A começar pelo papel da ES Resources no financiamento da Eurofin, sociedade que terá servido para camuflar operações menos claras do BES no GES.

Maria Mortágua, do BE, quis saber como é que nesse esquema, o BES terá emprestado cerca de 1300 milhões à ES Resources (da qual Manuel Fernando ainda era chairman - e que devia estar em desativação, pois no seu lugar tinha sido criada a Rioforte), tendo depois seguido 800 desses milhões para a Eurofin.

O gestor garantiu que nada sabia. Foi um dos momentos mais insólitos desta comissão de inquérito: "Ouvi essa conversa", "isso foi mencionado", mas saber, saber, não sabia nada. Quem emprestou 1300 milhões à empresa da qual Manuel Fernando era chairman? E quem investiu 800 milhões desse dinheiro na Eurofin, e para que fim?, insistiu a deputada do BE. O chairman não sabia. Falou em "certas pessoas dentro grupo que tinham acesso também à ES Resources, da área financeira", "não sei exatamente quem", mas sempre foi explicando que Salgado, Castella e Machado da Cruz controlavam a tesouraria central e "bastavam duas assinaturas". Então quais foram? "Não sei, estamos a investigar."

Sobre o investimento de 900 milhões da PT na Rioforte, o mesmo mistério. Manuel Fernando começou por dizer que não sabia, para depois admitir que sabia, mas não tinha estado envolvido. Só falou com a PT, diz, quando foi preciso informar que a Rioforte não podia pagar o empréstimo que tinha sido feito.

Sobre os submarinos, idem aspas: não sabia de nada, não teve intervenção, mas sim, confirmou que recebeu "1 milhão de euros" por este negócio. Transferidos pela Escom a título de "pagamento pelos resultados obtidos", mas a troco de coisa nenhuma.

Nem perguntas factuais - como "quantas ES Resources existiam?" - o gestor foi capaz de responder com precisão. "Existia duas ou três", uma nas Bahamas, outra no Luxemburgo, e outra talvez no Panamá, "não tenho bem a certeza". Isto, recorde-se, sobre entidades de que tinha sido vice-presidente e, depois, chairman.

"Só uma vez assinei de cruz"
Contra este desconhecimento endémico, sucessivos deputados - BE, PSD, PS, PCP... - foram lembrando as funções que o gesto ocupava. "O que nos diz é que era o chairman, mas punham e tiravam dinheiro da sua empresa sem saber de nada", resumiu Pedro Saraiva, do PSD. E foram lembradas as assinaturas de Manuel Fernando em muitos documentos do grupo e em atas do conselho superior onde estes assuntos eram tratados. Assinava de cruz?, questionou o socialista José Magalhães, fazendo um trocadilho entre a frase feita e o nome do contabilista. "Se alguma vez assinei de cruz? Assinei muitos documentos à base da confiança. Só uma vez assinei de cruz" - não explicou quando.

Apesar da Rioforte ter sido um dos pilares do desmoronamento do grupo, o gestor fez ao longo da audição muitos elogios à sua robustez ("debilidades na Rioforte não havia") e ao seu modelo de governação ("tinha uma governança impecável", "de acordo com as melhores e mais recentes práticas internacionais").

"Onde confessa que está, não vê, não ouve. E quando fala, não diz", concluiu José Magalhães.


Houve momentos em que, perante o desempenho de Manuel Fernando, o constrangimento geral era quase palpável na sala da comissão de inquérito. Mas talvez não fosse razão para tanto. Afinal, tratava-se do homem que, apesar de ter começado a sua audição por notar que fez "estudos superiores em Inglaterra", também contou que, em 2005, se afastou de funções executivas no ramo não financeiro do GES "porque senti necessidade de profissionalizar a gestão ao mais alto nível"... O homem que sabia de menos não pode ser acusado de se ter posto em bicos de pés.

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