sábado, 22 de novembro de 2014

CASO SÓCRATES - A hora mais perigosa do regime / Rui Ramos


CASO SÓCRATES
A hora mais perigosa do regime
Rui Ramos
22/11/2014 / OBSERVADOR

O regime sobreviveu a tudo até agora, do BPN à Face Oculta. Mas ninguém sabe ao certo, num copo quase a transbordar, qual vai ser a gota de água a mais.

De buscas na sede do grupo Lena ontem à noite, resultou a detenção de José Sócrates quando aterrou em Lisboa, vindo de Paris. Já se disse que é a primeira vez que um ex-primeiro ministro é suspeito pela justiça de crimes praticados no Governo. De facto, há talvez um precedente: o do marquês de Pombal, acusado de abuso de poder e de corrupção – o que não o impediu, aliás, que ter agora a maior estátua de Lisboa. A justiça nem sempre faz história.

Haverá quem, muito correctamente, nos aconselhe a resumir tudo à pessoa de José Sócrates, e a aguardar pelo desfiar do novelo judicial com as piedosas cautelas habituais (inocente até prova em contrário, etc.). Está certo, e é assim que deve ser: ninguém de fora terá tido acesso ao processo, a justiça não falou, e José Sócrates também não. Acontece, porém, que tudo se passou uma semana depois da detenção de uma mão-cheia de altos quadros do Estado, incluindo o director de uma polícia. O regime foi varrido, subitamente, por um holofote pouco lisonjeiro. Mesmo que estes casos não venham a ter consequências judiciais, já têm consequências políticas.

A primeira dúvida é esta: vai a oligarquia política conter-se e demonstrar confiança no regime enquanto Estado de direito? Ou, pelo contrário, irá dividir-se e lançar-se numa espiral de insinuações e de suspeitas mútuas, descendo todos os degraus da escada da infâmia? As primeiras horas não são conclusivas. As lideranças partidárias mantiveram-se até agora discretas. Infelizmente, uma vista de olhos pelo Facebook sugere que noutros patamares da hierarquia política nem sempre há, já não digo sentido de Estado, mas até consciência da gravidade das circunstâncias. O hábito de utilizar “casos” e escândalos na chicana política parece ter privado demasiada gente de circunspecção e de prudência. Por verrina ou demagogia, os nossos oligarcas habituaram-se a falar uns dos outros sem qualquer respeito: “mentira” e “ladroagem” são hoje banalidades da linguagem parlamentar. A ânsia de fama e de destaque na imprensa e nas redes sociais, onde a moderação e o equilíbrio não retêm atenções, apagou os últimos vestígios de cortesia e de bom senso. Esta piromania política pode agora ser fatal.

Quando a troika se despediu em Maio, muitos esperaram o retorno da “normalidade”: concluído o programa de ajustamento orçamental, a mesma classe política iria continuar a dominar o país, como se nada tivesse acontecido. Os reformados e os funcionários públicos ganhavam menos, mas, caso único na Europa, a crise não confrontara o sistema com uma Frente Nacional, um Syriza, um Podemos ou um 5 Estrelas. A continuidade parecia assegurada. A oligarquia sentiu-se à vontade para se dedicar aos desportos radicais da política com toda a dureza. Era outra vez 2004 ou 2005.

Acontece que, entretanto, alguns pilares do regime cediam. A partir de Julho, tivemos um “ajustamento” do poder económico-financeiro, com a detenção de Ricardo Salgado, a “resolução” do BES e o colapso da PT. Neste momento, não é possível excluir um ajustamento análogo do poder político. Os últimos casos judiciais, com as doses certas de histeria político-mediática, podem servir para muita coisa. Por exemplo, para atear finalmente um surto de populismo contra os partidos e as ideologias tradicionais. O que falta? Que mais gente na classe política sinta que está na altura de apear-se deste comboio e tentar apanhar o próximo. Nesse momento, por pânico ou por oportunismo, os mais inesperados rearranjos poderão tornar-se possíveis. É verdade: o sistema sobreviveu até agora a todos os seus putativos apocalipses, do BPN à Face Oculta. Mas ninguém sabe ao certo, num copo quase a transbordar, qual vai ser a gota de água a mais.


Em 1994, a primeira república italiana do pós-guerra acabou assim, com a investigação judicial das “mani pulite”, encetada com a prisão de um dirigente do Partido Socialista Italiano. Os antigos políticos e os antigos partidos foram varridos. Infelizmente, o que veio a seguir não é melhor. Mas às vezes, não há escolha: há coisas que só podem cair.

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