quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Os privilegiados que vivem entre a política e os negócios, por PEDRO SOUSA CARVALHO. Decisão de arquivar denúncia contra Passos Coelho já está a suscitar dúvidas.

Passos Coelho deverá falar sobre o caso nesta sexta-feira, no Parlamento

OPINIÃO
Os privilegiados que vivem entre a política e os negócios
PEDRO SOUSA CARVALHO 26/09/2014 – PÚBLICO

Este mês de Setembro tem sido uma fartura de notícias de titulares ou ex-titulares de cargos políticos que foram condenados, acusados ou são suspeitos de negócios ou comportamentos menos claros envolvendo a política e negócios.

O primeiro caso foi o de Armando Vara. Condenado a cinco anos de prisão por três crimes de tráfico de influência. Os juízes deram como provado que o ex-ministro adjunto recebeu 25 mil euros de um sucateiro como compensação pelas diligências por si empreendidas a favor das suas empresas.

O segundo caso foi o de Maria de Lurdes Rodrigues. Condenada a uma pena suspensa de prisão de três anos e meio e ainda a pagar ao Estado 30 mil euros por ter violado a lei, ao contratar por ajuste directo, quando era ministra da Educação, o irmão do dirigente socialista Paulo Pedroso. Os juízes consideraram provado que a não existência de concurso público foi motivada por afinidades pessoais e político-partidárias.

O terceiro caso foi o de Luís Filipe Menezes. Não foi condenado e nem é acusado. Mas a Visão diz que a Justiça está a investigar várias alegadas irregularidades nas estruturas locais e nacionais do PSD, nomeadamente em Gaia, no tempo em que Menezes era o presidente da câmara. Um caso onde alegadamente há de tudo: ajustes directos e concursos para campanhas do PSD, contas e facturas que não batem certo, contratações de agências de comunicação e empresas, e transferências bancárias pouco transparentes.

O quarto caso é o de Passos Coelho. Também não foi acusado e muito menos condenado. Mas ao longo da semana avolumaram-se suspeitas, já que o primeiro-ministro continua sem esclarecer se recebeu ou não dinheiro da Tecnoforma numa altura em que era deputado, aparentemente em regime de exclusividade. E a existir esses pagamentos se foram ou não declarados ao Fisco, partindo do princípio que deveriam ter sido.

Confrontado pelos jornalistas, Passos limitou-se a dizer que não se recordava. Disse aquilo que os advogados aconselham os seus clientes a dizer para não se comprometerem, nem com a verdade, nem com a mentira. E não vale a pena argumentar, como fazia ontem Teresa Leal Coelho na TSF, que o primeiro-ministro não tem de dar explicações porque isso seria inverter o ónus da prova. Em política, quando os eleitos estabelecem um contrato de confiança com os eleitores, os crimes não prescrevem e a inversão do ónus da prova é uma obrigação moral.

Este caso até é relativamente simples de resolver. Se o primeiro-ministro cometeu alguma ilegalidade no passado, demite-se. Aliás, como o próprio sugeriu que faria caso se viesse a detectar alguma ilegalidade. Muitos no passado nem sequer tiveram coragem de dizer isso. E depois desencadeia-se o processo político normal para empossar um novo primeiro-ministro. Se o país sobreviveu a três anos de troika, à queda de um grande banco e à demissão irrevogável de Paulo Portas também sobreviverá à queda de Passos Coelho. Caso haja uma explicação lógica, legal e convincente para as suspeitas, dada pelo próprio, pela Tecnoforma, pelo Fisco ou pelo Parlamento, o primeiro-ministro cumprirá o mandato para o qual foi eleito. E quem se precipitou em acusá-lo de alguma coisa deverá retractar-se.

Quer Armando Vara, quer Maria de Lurdes Rodrigues têm direito a recorrer das decisões dos tribunais. E quer Luís Filipe Menezes, quer Passos Coelho têm direito a defender o seu bom-nome. Mas entre todas estas condenações, investigações e suspeitas há um denominador comum; uma aparente promiscuidade entre negócios e política. Como dizia há dias o próprio Passos Coelho na Festa do Pontal, na altura a propósito do caso BES, "vamo-nos apercebendo bem dos privilégios – para não dizer da falta de ética – de muita gente que vivia entre a política e os negócios e os negócios e a política”.

Hoje em dia todos nós estamos bastante menos tolerantes para situações de promiscuidades, de cunhas, de favores, de esquemas, de privilégios, de chico-espertismo. E ainda bem que estamos. Mas não chega. É preciso apertar a malha legal. Um bom ponto de partida seria olhar para o projecto de lei que foi apresentado na semana passada por António José Seguro para alterar o Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos. Pode gostar-se mais ou menos de Seguro, e até se pode questionar o timing da proposta; mas é incontestável o valor de algumas delas.

Se proibirmos os deputados de exercer funções de peritos, consultores ou árbitros em qualquer processo em que o Estado seja parte; se obrigarmos os titulares de cargos políticos a revelar a origem dos seus rendimentos, com a indicação das entidades pagadoras; ou se garantirmos que através de um cruzamento de dados se pode fiscalizar a veracidade das declarações de património e rendimentos; então muito provavelmente o caso Tecnoforma – ou aquilo que alguns pensam ser o caso Tecnoforma – não existiria. Aliás, a questão da fiscalização é vital. Como dizia este fim-de-semana Luís de Sousa, presidente da Transparência e Integridade, “há várias entidades que fiscalizam em teoria estas questões, o Tribunal Constitucional, a PGR, a Comissão de Ética do Parlamento, mas a verdade é que não fiscalizam na prática”. Enquanto não dermos este passo vamos continuar a suspeitar, a acusar, a condenar e a lamentar aqueles que vivem entre a política e os negócios.


Decisão de arquivar denúncia contra Passos Coelho já está a suscitar dúvidas
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO e PAULO PENA 26/09/2014 - PÚBLICO
O inquérito aberto na sequência da denúncia de que Passos Coelho recebeu dinheiro ilegalmente foi arquivado. A decisão poderá ter ignorado a hipótese de haver crimes que ainda não prescreveram.

A Procuradoria-Geral da República anunciou nesta quinta-feira à noite, em comunicado, que a denúncia anónima que visava Pedro Passos Coelho e a sua “eventual ligação à Tecnoforma”, recebida em Junho deste ano, deu origem a um inquérito que foi de imediato arquivado pelo Departamento de Investigação e Acção Penal (DCIAP).

A justificação do arquivamento, diz a PGR, prende-se com o facto de os crimes eventualmente praticados já estarem prescritos, verificando-se por isso a “inadmissibilidade legal do procedimento.”

A denúncia em causa referia que Passos Coelho teria recebido cerca de cinco mil euros por mês, num total próximo de 150 mil euros, entre 1997 e 1999, pelas funções que exerceu como presidente do Conselho de Fundadores do Conselho Português para a Cooperação (CPPC), uma organização não governamental criada pela empresa Tecnoforma para angariar financiamentos públicos para a sua actividade. Parte desses pagamentos terá sido feita através da agência do Banco Santander do Laranjeiro.

Passos Coelho não poderia ter recebido qualquer verba da Tecnoforma, visto que na altura desempenhava as funções de deputado em regime de exclusividade e, a tê-las recebido, não as incluiu nas suas declarações de IRS.

De acordo com a nota da PGR, a denúncia foi, numa primeira fase, “junta ao inquérito que tem por objecto a investigação da actividade da Tecnoforma” e que está em curso no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) desde o início de 2013, em colaboração com o gabinete de luta anti-fraude da União Europeia (OLAF).

Num segundo momento, “após análise da denúncia”, foi decidido instaurar um inquérito autónomo relativo à mesma. “Este inquérito foi arquivado nos termos do artº 277, n.º 1 do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade de procedimento legal”, diz a PGR.

A procuradoria acrescenta que, “verificando-se a extinção da hipotética responsabilidade criminal por via da prescrição, está legalmente vedado ao Ministério Público proceder a investigação com a finalidade de tomar conhecimento sobre a veracidade ou não dos factos constantes da denúncia”.

O comunicado não refere qual o tipo de crime que já teria prescrito, sendo certo que há crimes que poderiam estar associados a este caso cuja prescrição ainda não ocorreu, garantiram ao PÚBLICO fontes judiciais.
 
Segundo as mesmas fontes, a decisão de retirar a denúncia do inquérito para o qual ela começou por ser encaminhada pelo director do DCIAP, Amadeu Guerra, e no âmbito do qual já tinham sido iniciadas algumas diligências que não terão sido concluídas, foi tomada muito recentemente, já depois de o caso ter saltado para as primeiras páginas dos jornais.

Esta terá sido também a forma encontrada pela PGR para arrumar, sem qualquer diligência, o assunto do pedido de Passos Coelho para que seja esclarecida a sua ligação à Tecnoforma.

Independentemente da decisão de arquivamento deste inquérito e dos contornos que a rodeiam, as relações do primeiro-ministro com o CPPC estão longe de estar esclarecidas, sobretudo porque o próprio ainda não pronunciou as palavras-chave: Sim ou não, para confirmar ou desmentir que recebeu quaisquer remunerações que não tenha declarado ao fisco e à Assembleia da República.

Em todo o caso, o então deputado sabia, desde o início do mandato, que não podia ter outra “fonte de rendimento” e assegurou ao Parlamento, em 2000, que exercera as suas funções “em exclusividade”.

A consulta dos documentos que Albino Azevedo Soares, secretário-geral do Parlamento, disponibilizou nesta quinta-feira aos grupos parlamentares, a pedido do PCP, e entregou ao PÚBLICO em cumprimento da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, revela um facto importante: Passos Coelho estava ciente, desde o início do mandato, em 1996, que não podia – sob pena de tal ser incompatível “com o regime de dedicação exclusiva” – ter qualquer “actividade/fonte de rendimento/principal ocupação” que não a de deputado.

É isso que se pode ler no parecer da Comissão de Ética da Assembleia da República, assinado pelo seu presidente à época, o socialista Videira Lopes, que analisou o caso das colaborações de quatro deputados, entre os quais Passos Coelho, com a RDP. Na altura, Alberto Martins (PS), Jorge Ferreira (CDS), Luís Sá (PCP) e Passos Coelho (PSD) perguntaram àquela comissão se podiam receber uma remuneração pela sua participação num programa de debate naquela rádio, tendo em conta que a RDP é uma empresa pública.

A conclusão foi “sim”. Podiam, visto que essa colaboração com a rádio “não é um ‘modo de vida’”. Mas o parecer de Videira Lopes estreita as balizas do que era, ou não, permitido a um deputado. Entende que podiam receber por colaborações pontuais desde que tal não constituísse uma “prestação de serviço profissional”.

Quando, a 11 de Outubro de 1996, escassos cinco meses depois do parecer da Comissão de Ética, Passos fundou o CPPC, com sede nas instalações da Tecnoforma, em Almada, sabia que a sua actividade nessa organização não poderia ser remunerada, sob pena de colidir com o regime de exclusividade que veio a invocar junto do Parlamento para receber o subsídio de reintegração relativo a toda a legislatura.

É certo que o actual primeiro-ministro nunca deu conhecimento oficial desta sua actividade, no registo de interesses, obrigatório, no Parlamento. Ainda que tenha vindo a assumir um papel primordial na actividade do CPPC. Passos foi presidente do Conselho de fundadores e é referido nas actas da organização como “dep. Pedro Passos Coelho”.

Foi ele, como demonstra a “acta número um” daquele conselho, quem dirigiu a primeira reunião. Foi ele quem acrescentou aos fundadores os nomes de Ângelo Correia e do Grupo Visabeira, que já negou peremptoriamente ter alguma vez participado ou financiado o CPPC.

Foi também Passos Coelho quem propôs os nomes dos três membros da direcção, eleitos em Outubro de 1996: Manuel Castro, Fernando Madeira e João Luís Gonçalves. Os dois primeiros eram sócios da Tecnoforma, a sociedade que financiava a organização.

O terceiro, que foi secretário-geral da JSD quando Passos era seu presidente, veio a tornar-se um dos donos da empresa em 2002, através da offshore Itaki, com sede em Gibraltar, quando Madeira vendeu a sua participação no capital.

A confusão entre o CPPC e a Tecnoforma – empresa a que Passos viria a ligar-se contratualmente apenas em 2002 e da qual veio a ser administrador juntamente com Francisco Nogueira Leite, um seu amigo que agora é administrador da Paravalorem por nomeação governamental – talvez justifique o que dois ex-administradores daquela empresa, Manuel Castro e Sérgio Porfírio, disseram ao Expresso em 2011: que o então deputado fora “consultor” da Tecnoforma desde 1996.

João Luis Gonçalves e o antigo deputado socialista Fernando Sousa, que partilharam com Passos Coelho responsabilidades nos órgãos sociais do CPPC, confirmaram ao PÚBLICO há dois anos que receberam automóveis da Tecnoforma quando eram dirigentes do CPPC.

Fernando Madeira, que detinha então 80% da empresa, garantiu ao PÚBLICO, em 2012, que Passos nunca foi “consultor” da empresa até 2002. E na semana passada adiantou: “O senhor não foi para ali [para o CPPC] pelos meus lindos olhos. Estou convencido de que ele [Passos Coelho] recebia qualquer coisa, mas não posso falar em valores, porque não posso provar nada”.

Passos nunca negou que tivesse sido remunerado pela sua presidência do CPPC. “Não tenho presente todas as responsabilidades que desempenhei há 15 anos, 17 e 18. É-me difícil estar a detalhar circunstâncias que não me estão, nesta altura, claras”, referiu no sábado.

Já a 28 de Novembro de 2012, questionado pelo PÚBLICO, o primeiro-ministro aceitou responder, por escrito, a dez perguntas. Porém, só deu nove respostas. A pergunta que ficou por responder foi, justamente, essa: “A Tecnoforma (ou os seus proprietários) alguma vez remunerou os serviços prestados pelo dr. Passos Coelho ao CPPC?”

Passos disse que as despesas do CPPC “constam dos relatórios” mas que não guardou “pessoalmente” esses registos. Mas admite que dedicou “algum trabalho” à organização.

Fernando Madeira, numa entrevista à Sábado, procurou qualificar os serviços prestados pelo então deputado: “O Pedro é que abria as portas todas.” Até em São Bento terão decorrido algumas destas reuniões de trabalho, entre o dono da Tecnoforma e o deputado que presidia ao CPPC.


O facto de o ex-deputado ter estado em exclusividade entre 1995 e 1999, como declarou por escrito ao Parlamento, é particularmente incómodo, face às suspeitas existentes de que recebeu 150 mil euros entre 1997 e 1999, pagos pela Tecnoforma para presidir ao CPPC, o que, a ser verdade, poderia envolver a prática de diversos crimes.

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