terça-feira, 16 de setembro de 2014

O bypass europeu: ainda a Escócia, ainda a Europa, por PAULO RANGEL. Se a Escócia disser adeus, será para sempre, avisou Cameron.

O ponto que se quer aqui marcar talvez pareça surpreendente vindo de um europeísta. Mas nem por isso deve ser iludido. Em certa medida, o recrudescimento das aspirações independentistas só é possível porque a União Europeia atingiu o grau de maturidade institucional e política que atingiu. Num mundo globalizado, a ideia de um Estado flamengo ou escocês pareceria uma miragem, se eles não tivessem um quadro constitucional de integração numa entidade com outra dimensão, peso e desenvoltura. O que sucede é que, a partir do momento em que eles podem integrar-se na UE, deixam de precisar do Estado de suporte em que estavam inseridos. Na verdade, essas comunidades políticas de baixa densidade – chamemos-lhe assim à falta de uma qualquer nomenclatura – não compreendem porque hão-de coexistir dois níveis político-constitucionais acima delas. Se têm Bruxelas, não carecem de Londres. Se dispõem de Bruxelas não necessitam de Madrid. A subsistência de uma entidade constitucional não estadual num patamar acima dos Estados passa a permitir uma ligação imediata e directa entre o nível mais baixo e o nível mais alto, sem ter de passar pelo grau do Estado-nação (ou, mais exactamente, Estado vestefaliano).”
PAULO RANGEL

OPINIÃO
O bypass europeu: ainda a Escócia, ainda a Europa
PAULO RANGEL 16/09/2014 - 03:54
O recrudescimento das aspirações independentistas só é possível porque a União Europeia atingiu o grau de maturidade institucional e política que atingiu.

1. Na semana passada, evidenciou-se aqui como o discurso dos políticos ingleses estimulou, de alguma maneira, por efeito de imitação – na teoria do federalismo, falar-se-ia de isomorfismo (Lijphart) –, o despontar do sentimento e do ressentimento independentista escocês. E deu-se até o exemplo paralelo do estímulo à não solidariedade federal que o discurso dos políticos alemães, no contexto da crise europeia, tem provocado no interior da Alemanha, acicatando rivalidades e tensões entre os estados federados. De resto, o fenómeno das regiões ricas do Norte que não querem pagar as contas das regiões pobres do Sul está presente – verdadeiramente omnipresente – em toda esta discussão da autodeterminação de “novos” povos europeus. A Flandres é bem mais rica do que a Valónia, a Padânia cansou-se de sustentar o Mezzogiorno, o País Basco e a Catalunha queixam-se amargamente da factura que lhes é imposta pelas zonas pobres da Espanha. Curiosamente, só a Escócia – que também está a Norte – não é mais rica do que o Sul. Mas esta conclusão pode ser precipitada, pois os velhos Pictos fazem as contas ao petróleo do Mar do Norte que, se se convertesse numa receita própria e exclusiva dos escoceses, logo os tornaria – arriscam eles – numa espécie de segunda Noruega ou, ao menos, de segunda Dinamarca. Em menos palavras: a retórica dominante da crise das dívidas soberanas, com o seu ajuste de contas permanente, não ajudou a serenar a emergência destes sentimentos autonomistas.

2. É óbvio, todavia, que esta questão não é meramente económica – e esse é um dos erros dos adeptos do “não”, que insistem numa mera contabilidade de “viver melhor, viver pior”, desvalorizando a profunda carga espiritual e simbólica de uma escolha deste tipo. E é igualmente óbvio que a questão não se pôs como um efeito lateral ou colateral do uso ou do abuso de um certo tipo de discurso por banda dos responsáveis políticos. Um movimento fundo e sério em direcção à independência não pode nunca ser uma simples refracção da ambiguidade e do oportunismo enviesado do discurso político. A questão é muito mais dura e muito mais densa.

3. São muitos os que – decerto em desespero argumentativo – para aí vaticinam a inviabilidade de um Estado escocês ou de um Estado catalão. Mas a primeira pergunta a que terão de responder é a de saber se acham que Malta, Chipre, Luxemburgo, Estónia, Letónia ou Eslovénia são ou não Estados viáveis… Sim, porque um independentista flamengo ou veneziano não vislumbra que secreta razão empresta viabilidade à Estónia ou a Chipre e não a havia de conferir ao País Basco ou à Catalunha. E há-de querer saber o que a Irlanda ou a Dinamarca têm que não tenha uma destas regiões aspirantes a Estados. Eis os perigos que sempre traz uma argumentação puramente economicista.

A querer levantar objecções, talvez a questão deva ser reformulada e suscitada por um outro ângulo. Reformulemos, pois. A Estónia ou a Eslovénia seriam viáveis como Estados e enquanto Estados se não existisse a União Europeia? Não será o “guarda-chuva” político e constitucional da UE o garante da viabilidade de uma série de Estados – a bem dizer, de pequenos Estados? E não será um garante tão intimamente ligado à sua viabilidade e à sua continuidade que, de algum modo, altera a própria natureza estadual tal como ela era tradicionalmente concebida?

4. O ponto que se quer aqui marcar talvez pareça surpreendente vindo de um europeísta. Mas nem por isso deve ser iludido. Em certa medida, o recrudescimento das aspirações independentistas só é possível porque a União Europeia atingiu o grau de maturidade institucional e política que atingiu. Num mundo globalizado, a ideia de um Estado flamengo ou escocês pareceria uma miragem, se eles não tivessem um quadro constitucional de integração numa entidade com outra dimensão, peso e desenvoltura. O que sucede é que, a partir do momento em que eles podem integrar-se na UE, deixam de precisar do Estado de suporte em que estavam inseridos. Na verdade, essas comunidades políticas de baixa densidade – chamemos-lhe assim à falta de uma qualquer nomenclatura – não compreendem porque hão-de coexistir dois níveis político-constitucionais acima delas. Se têm Bruxelas, não carecem de Londres. Se dispõem de Bruxelas não necessitam de Madrid. A subsistência de uma entidade constitucional não estadual num patamar acima dos Estados passa a permitir uma ligação imediata e directa entre o nível mais baixo e o nível mais alto, sem ter de passar pelo grau do Estado-nação (ou, mais exactamente, Estado vestefaliano).

Nada que nos deva espantar. Com efeito, a UE, desde sempre, foi uma aliada financeira e administrativa, mas também política, das regiões. É bem conhecida a velha divisa “Europa das regiões”. Esta aliança táctica entre a Europa e as regiões tinha naturalmente um desígnio comum: retirar poder e poderes ao Estado-nação (ao Estado central e centralizado). Tratava-se de um movimento simétrico, mas convergente no esvaziamento dos poderes do Estado enquanto centro político: as regiões tiravam por dentro, a Europa retirava por fora. E quanto menos poder tivesse dentro, mais fácil era puxá-lo para fora; e quanto menos poder tivesse fora, mais simples era subtraí-lo para dentro.

5. Tudo isto serve para compreender que as tensões centrífugas a favor das regiões não andam desligadas das tensões centrípetas a crédito de Bruxelas. Os eurocépticos pensarão que, dados os riscos e ameaças destes movimentos secessionistas, este é mais um motivo para esconjurar a União e a sua lógica. Mas o que está em causa é talvez mais fundo e mais denso: é a própria natureza da forma política Estado que está em manifesta transformação. É, aliás, isso que favorece o regresso à Europa destas comunidades políticas menores, criando um tecido de grandezas assimétricas e de equilíbrios típicos de um caleidoscópio. À boa maneira heraclitiana, a constituição está em devir.


Se a Escócia disser adeus, será para sempre, avisou Cameron
Primeiro-ministro britânico discursou em Aberdeen, na sua última acção de campanha pelo “não” no referendo que poderá desfazer o Reino Unido, levando à saída de uma das quatro nações que o compõem

Clara Barata / 16-9-2014 / PÚBLICO

“Um voto no ‘não’ pode significar uma mudança mais rápida, mais justa, mais segura e melhor”, prometeu David Cameron

Um adeus é para sempre. Se os escoceses derem a vitória ao “sim” no referendo sobre a independência de quinta-feira, o resultado será irreversível. “Não há como voltar atrás. Não há uma segunda volta. Se a Escócia votar ‘sim’, o Reino Unido vai partir-se e vamos separar-nos para sempre”, disse David Cameron em Aberdeen, a terceira maior cidade da Escócia, um pólo universitário e também da exploração petrolífera.
Foi uma última tentativa do primeiro-ministro britânico de tentar ganhar pontos para o “não”, quando as sondagens mostram os dois lados virtualmente empatados, com as diferenças dentro das margens de erro dos estudos de opinião. Salientou os “valores britânicos, a justiça, a equidade e a liberdade”, partilhados pelas quatro nações que constituem o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales), e esforçou-se para sublinhar os “factos”, os aspectos negativos de uma Escócia independente.
“Deixaremos de ter a mesma moeda; os fundos de pensões vão ser repartidos; passaremos a ter fronteiras internacionais, que não serão tão fáceis de cruzar; acabará o apoio que têm nas embaixadas britânicas quando estão no estrangeiro; mais de metade dos empréstimos para a compra de casa passarão, automaticamente, a estar em bancos estrangeiros; as taxas de juro deixarão de ser reguladas pelo Banco de Inglaterra — com a estabilidade e segurança que isso garante; se ficarem bancos na Escócia, e se tiverem problemas, terão de ser os contribuintes escoceses a pagar os custos sozinhos”, enumerou Cameron.
“Não estou a meter medo, é meu dever garantir que não é vendido aos escoceses um sonho que logo desaparecerá”, defendeu-se David Cameron, reconhecendo a acusação, feita pelos partidários do “sim”, de que os políticos britânicos e as grandes empresas que ameaçam retirar a sua sede da Escócia se o “sim” ganhar têm usado “a intimidação, o medo e ameaças” como armas na campanha eleitoral, nas palavras de um comentário do jornalista escocês Kevin McKenna no The Guardian.
Mas não é claro qual o efeito que terão estes apelos desesperados de Cameron. O seu Partido Conservador obtém a maioria do apoio em Inglaterra — e Alex Salmond, o primeiro-ministro e líder independentista escocês, gosta de dizer que “há mais pandas gigantes no zoo de Edimburgo do que deputados tories no parlamento regional da Escócia”. Os tories elegeram apenas um deputado para o parlamento de Edimburgo.
O motivo deste desamor pelos conservadores remonta à passagem de Margaret Thatcher pelo Governo de Londres (1979-1990), aos anos de crise da década de 1980 e à reconversão da economia britânica imposta pela primeira-ministra conservadora, que “criaram uma agenda política a norte da fronteira em nítido contraste com o Sul, em Inglaterra”, escreveu no fim-de-semana que passou no The Guardian o respeitado historiador escocês Tom Devine, que declarou o seu apoio ao “sim” à independência. A Escócia tornou-se uma zona livre de tories, em termos eleitorais. Foi outro bastião da união que passou à história”, escreveu Devine.
Cameron só nos últimos tempos participou na campanha, quando o “sim” disparou nas sondagens. Em desespero, o Governo conservador ofereceu a garantia de mais poderes autonómicos, ao nível da cobrança de impostos, orçamento e segurança social — e rapidamente, em troca de a Escócia continuar no Reino Unido. “Em Novembro teremos um Livro Branco, que será legislação em Janeiro – a tempo do aniversário de um dos heróis da Escócia, o poeta Robert Burns, que se celebra a 25 de Janeiro. Este calendário já foi aceite pelos principais partidos e estou preparado para trabalhar nele em 2015”, garantiu Cameron.
“Portanto, um voto no ‘não’ significa, na verdade, uma mudança mais rápida, mais justa, mais segura e melhor”, afirmou Cameron — que copiou quase palavra a palavra o slogan lançado na sexta-feira pelo ex-primeiro-ministro trabalhista Gordon Brown (mais rápido, mais seguro, melhor), salienta o The Guardian.
Brown foi considerado o primeiroministro menos popular do Reino Unido em 2010, ao conduzir o seu partido para uma devastadora derrota eleitoral, que levou Cameron ao poder. Mas foi ele que deu novo fôlego à campanha pelo Vamos Continuar Juntos, já em Setembro, considerando que o tom demasiado negativo estava a alienar os eleitores. Na verdade, foi ele que anunciou o projecto legislativo para novos poderes autonómicos – Cameron apenas foi atrás.
Numa série de discursos fervorosos, Brown fez renascer a campanha do “sim”. “Podem-se perder países por um erro. Não deixem que isto se transforme em políticos britânicos contra a Escócia”, afirmou.

Cameron segue a música imposta por Brown: “Se não gostam de mim, não vou cá ficar para sempre!...”, afirmou, com um riso nervoso. “Para conseguir um futuro melhor não é preciso destruir o nosso país.”

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