domingo, 28 de setembro de 2014

Calçado na calçada


CALÇADA PORTUGUESA
Calçado na calçada
Lucy Pepper/ 28-9-2014 / OBSERVADOR

Andar na calçada com sapatos rasos já é bastante difícil. Aqueles que o fazem com saltos altos merecem, por isso, todos os louros. Nos dias chuvosos, é ainda pior, e todos parecem potros raquíticos
Se alguma vez me virem de saltos altos, sejam simpáticos. Estarei a fingir que está tudo bem, mas o meu sorriso há-de ser falso, apenas para cobrir a dor. Sentir-me-ei como se estivesse a pisar cinzas quentes, os meus dedos do pé estarão dormentes e os meus tornozelos a lamentar-se. Os saltos fazem-me mais alta e dão-me pernas mais elegantes, mas nada disso compensa o sofrimento. Esqueci-me logo das dores do parto. Mas ainda lembro as dores de uma hora à espera do autocarro nocturno em King’s Cross, com botas novas de saltos altos, há vinte anos.
Tenho muito admiração pelas mulheres que passam os seus dias de saltos altos. Também me preocupo com a sua sanidade mental, a sua capacidade de aguentar a dor (versus o seu desejo de exibir uma aparência elegante) e os seus calos. Mas acima de tudo (porque gosto muito de sapatos), invejo-as. Bem, invejo as que sabem andar com elegância sobre saltos vertiginosos, e que não têm o aspecto de um potro a dar os seus primeiros passos, acabado de cair do útero da mãe. Não há muitas que consigam.

A minha admiração é ainda maior pelas mulheres (e pelos homens) que conseguem andar bem de saltos altos em Lisboa, na calçada. Admiro a capacidade de se deslocarem para cima e para baixo (para baixo é mil vezes pior) em pedras que, de tão devastadoramente gastas, têm o brilho de vidro, e também a arte com que evitam as pedras soltas e os grandes buracos.

Andar na calçada com sapatos rasos e sensatos já é suficientemente difícil. Aqueles que o fazem com saltos altos merecem, por isso, todos os louros. Nos dias chuvosos, é ainda pior, e todos, em saltos altos ou rasos, parecem potros raquíticos. Quando a calçada, já brilhante e gasta, fica molhada e duplamente perigosa, especialmente nas inclinações, vemos toda a gente, em todos os tipos de calçado, a dar cada passo com todo o cuidado. Tentam parecer que andam normalmente, quando na verdade estão cheias de medo que o seu próximo passo as deixe de rabo no chão ou com o pescoço partido, antes de chegar ao escritório. Estou até a pensar em inventar um material para solas completamente à prova-de-calçada… ainda não existe nada no mundo que sirva … não há plástico, nem couro, nem silicone, nem borracha, nada que previna deslizamentos na calçada a 100%. 

A calçada é linda e é um grande ícone de Lisboa, mas, por amor de deus, quem é que a achou uma boa ideia? Há centenas de anos, quando começarem usar calcário como pavimento e, depois de um tempo, quando tudo ficou muito afagado e brilhante, porque é que ninguém disse: “Ó pá, realmente, isto ainda é capaz de não funcionar bem. Que tal inventarmos asfalto ou outra coisa, porque, estás a ver?, as cidades portuguesas têm muitas colinas, precisamos de alguma coisa que agarre!”

A calçada está cá há séculos, é demasiado tarde para mudar, como acontece com todas as tradições. Não podemos desfazer-nos dela. Faz parte deste sítio, do património. Quando se ouvem sugestões de que a calçada deve ser substituída por asfalto, estou rigorosamente do lado de “não!! nem pensar!!!”, porque é tão importante para o aspecto e o toque de Lisboa e do resto do país. Uma parte de mim, porém, imagina o dia em que será possível andar a pé na cidade sem nos inquietarmos com as áreas de calçada muito polida, em que não reparamos até ser tarde demais, ou com os dias chuvosos, ou com as pedras soltas que partem tornozelos. Não desejo que esse dia chegue, mas… desejo.

Lisboetas em saltos altos, saúdo-vos!


(traduzido do original inglês pela autora)

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