quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Liberdade vs. dinheiro, por Luís Rosa.


Liberdade vs. dinheiro
Por Luís Rosa
publicado em 21 Ago 2014 in (jornal) i online

Governo tem de investigar os deveres indignos que Cuba impõe aos médicos que trabalham em Portugal
Ocaso dos médicos cubanos é um daqueles em que o acessório se confunde com o essencial e em que os protagonistas trocaram os papéis. A Ordem dos Médicos actua como um sindicato preocupado com reclamar salários idênticos aos que são pagos aos colegas cubanos, a embaixada de Cuba ataca o bastonário José Manuel Silva como se fosse um dos partidos da maioria e o Ministério da Saúde brinca com os números. A ironia é que todos têm alguma razão: os médicos cubanos têm melhores condições e regalias salariais que os médicos de família em início de carreira (que ganham menos 1500 euros que os colegas americanos), os clínicos cubanos permitiram cobrir melhor o interior do país e melhorar o acesso ao Serviço Nacional de Saúde e o Estado tem um ganho financeiro efectivo se compararmos o custo de cada cubano com um médico no topo de carreira.

Mas mais importante que esta esgrima financeira e estatística é a questão ética – totalmente esquecida no meio do debate. Em primeiro lugar, dos 4230 euros pagos à empresa pública cubana pela vinda de cada clínico apenas 25%  vão para os clínicos propriamente ditos e para as suas famílias. A maior fatia, mais de 75%, vai para o próprio Estado cubano. É uma percentagem verdadeiramente agiota reclamada, ironia das ironias, por uma ditadura comunista. É certo que os fundos serão investidos no serviço nacional cubano, mas não é justo que os médicos (e as suas famílias) que prestam os verdadeiros serviços recebam apenas uma pequena parte da retribuição paga pelo Estado português.

Mas o mais grave é o suposto código de ética que o Estado cubano obriga os seus clínicos a seguir em missões no estrangeiro. Eis alguns exemplos: têm de informar os seus superiores quando começam a namorar com alguém, têm de avisar quando se ausentam das freguesias onde estão colocados, não podem falar à comunicação social sem autorização, só podem passar férias legais em Cuba e, claro, não podem ter relações com inimigos da revolução. São condições de trabalho que afectam direitos e liberdades básicas garantidas pela nossa Constituição e que deviam merecer a indignação da Ordem dos Médicos e de todos os sindicatos de profissionais de saúde. Além da mais que óbvia investigação do Ministério da Saúde e restantes autoridades de trabalho e judiciais para perceber se as leis portuguesas estão a ser respeitadas, Portugal, enquanto membro da União Europeia, não pode pactuar com este tipo de restrições, que afectam a dignidade humana. Esta vale muito mais do que qualquer ganho financeiro.

Jornalismo de investigação


Uma democracia forte depende, entre outras coisas, de um grau de escrutínio jornalístico intenso. Quanto maior o escrutínio, mais as liberdades e os direitos dos cidadãos ficam assegurados. Os acordos entre Portugal e Cuba eram secretos desde 2009, até o Ministério da Saúde os revelar ao i, esta semana, após uma queixa na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. A persistência da jornalista Marta F. Reis, e a investigação que fez a este caso, permitiu o escrutínio obrigatório em qualquer democracia. Infelizmente, a mentalidade salazarista do segredo continua a persistir na administração pública e nos sucessivos governos. Ainda não aprenderam que não vale a pena esconder nada. Mais cedo ou mais tarde, tudo se descobre.

Sem comentários: