quarta-feira, 13 de agosto de 2014

“Era uma vez um banqueiro muito bonzinho...”


“Era uma vez um banqueiro muito bonzinho...”
Manuel Loff / 14-8-2014 / PÚBLICO

Lembra-se da historinha do BPNque-não-custaria-um-cêntimo-aoscontribuintes? Permita-me, então, contar-lhe a historinha do BES. “Era uma vez um banqueiro respeitado, de família da boa burguesia e com muita tradição na finança portuguesa, de quem todos os governantes portugueses, antes e depois da Revolução, se sentiam gratos. Era um homem bem formado, que, depois de sofrer o espólio e o exílio, triunfara em Portugal depois de governantes sérios, como Cavaco Silva, corrigirem corajosamente as terríveis injustiças que o coletivismo revolucionário havia praticado contra ele e a sua família em 1975. O que fez pelo país e pelo sistema financeiro internacional foi de tal forma reconhecido pelos seus pares, os governos e as organizações internacionais, que granjeou prémios e condecorações.
Os melhores políticos da direita e da esquerda (a democrática, claro!) trabalhavam com ele, quer antes de ir (e bem) para o governo, quer depois dele saírem. Apesar de ser tratado carinhosamente como o DDT (Dono Disto Tudo), era um homem discreto e de bom gosto. Um dia, não se sabe bem porquê, um primo invejoso, que até tinha boas relações com o jovem primeiro-ministro de turno, conspirou contra ele. Entre histórias malvadas do primo e muita máfé que contra ele se levantou, o nosso banqueiro bom, que tanto fizera pelo país (e, é verdade, também por Angola) acabou perseguido pela justiça e incompreendido pelos mesmos governantes que até então juravam pela sua honestidade. Ainda hoje não se sabe quem enganou quem.”
Admita que esta poderia ser a história de Ricardo Salgado contada às criancinhas. O leitor acha-a absurda?, de mau gosto? Mas olhe que foi escrita ao estilo de um especialista destas coisas, João César das Neves ( JCN), o (também ele) respeitado economista da Universidade Católica que há uns anos nos contou a historinha das crises financeiras de Portugal: este era, antes do 25 de Abril, “um país pacato e trabalhador, poupado e prudente, que se sacrificava generosamente, labutando dia e noite para cumprir os deveres”, e “emigrava e procurava vida melhor noutras terras. E os patrões, franceses ou alemães, suíços ou americanos, gostavam dele, por ser pacato e trabalhador, poupado e prudente”. Por duas vezes, contudo, o país endividou-se acima das suas possibilidades. Primeiro, contava Neves às criancinhas, por culpa do 25 de Abril: “A opressão acabara (...) e Portugal voltou [para casa], porque já não seria preciso ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. (...) E Portugal gastou. Criou autarquias e dinamização cultural, comprou frigoríficos e televisões, fez planeamento económico, exigiu escolas e hospitais.” É a versão Cigarra&Formiga da tese da Revolução irresponsável e gastadora. A segunda vez, depois de Portugal ser “admitido na moeda única”, “achou que já não seria preciso ser pacato e trabalhador, poupado e prudente”: e gastou. Construiu autoestradas, fez parques industriais, exigiu computadores para todos os alunos e novas carreiras médicas”. Desta vez a culpa era dos “dirigentes e políticos [que] bramavam contra a nova ditadura do dinheiro e exigiam direitos” ( DN, 9/9/2013).
Dos banqueiros nem sombra. Estas histórias, por algum motivo, não incluem nunca Oliveiras Costas ou Ricardos Salgados, BPN, BCP ou BES. Nelas nunca aparecem os rombos colossais abertos pela banca nas finanças públicas, nem nelas se diz que o Estado faz mal em cobri-los à custa do português “pacato e trabalhador”. César das Neves é dos que acham (como toda a liberalice económica) que a culpa do endividamento português é sempre dos “direitos adquiridos”, dos que foram “os mais favorecidos nos anos de fartura” (“funcionários, médicos, professores, pensionistas, autarquias”, diz ele), que se “fingem desvalidos e abusam dos impostos dos pobres” ( DN, 7/10/2013). Esses é que arrombaram a economia do português “poupado e prudente”!
Em 15 dias, o governador do BdP e a ministra das Finanças passaram de “afirmar, a pés juntos, que o BES era um banco sólido e que possuía uma almofada financeira suficiente para suportar os prejuízos decorrentes da exposição ao grupo” a “dizerem precisamente o contrário, que tinham sido enganados, e que só tiveram conhecimento de informação ‘materialmente relevante’ muito recentemente” (Eugénio Rosa, estudo de 8/8/2014). Em qualquer caso, os contribuintes não pagarão a fatura!
As mesmas pessoas que foram (e são!) responsáveis pela liberalização financeira que produziu tudo isto continuam a ser surpreendidas pelos seus efeitos. Eles são só economistas, e a Economia deles é assim mesmo: ciência rigorosa para prever a bondade dos reajustamentos e da austeridade; desvalida e modesta leitura do mundo quando se trata de supervisionar a liberdade económica. Não se surpreenda agora o leitor se lhe explicarem, outra vez, que não nos resta senão reformar mais ainda o Estado, que gasta o que não pode em prestações sociais irresponsáveis, salários e pensões incomportáveis, resquícios inaceitáveis desse “Verão Quente de 1975” que ainda estamos a pagar!


Mas... não era do BES que estávamos a falar?

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