quinta-feira, 31 de julho de 2014

As primárias no PS são um passo na direcção errada, por Marina Costa Lobo.


OPINIÃO
As primárias no PS são um passo na direcção errada
MARINA COSTA LOBO 31/07/2014 - PÚBLICO

Antes de se preocupar com os simpatizantes, talvez os partidos se devessem lembrar dos abstencionistas.
Hoje em dia, ser contra uma proposta de abertura à sociedade civil equivale a assumir-se como antidemocrático. Basta invocar este princípio, e lá vamos nós, sonâmbulos, aceitando tudo o que nos é proposto. Por isso é que quando António José Seguro propôs – simplesmente para ganhar tempo na luta pela liderança do PS – a eleição directa para o candidato a primeiro-ministro, António Costa viu-se constrangido a aceitar. Se o presidente da Câmara de Lisboa recusasse, seria quase como rejeitar a própria ideia da participação da sociedade civil na política. Não é.

Esta via de suposta aproximação ao eleitorado constitui um passo na direcção errada no caminho da melhoria da qualidade da democracia. E por três razões: ela é redundante num sistema já altamente personalizado a nível das lideranças partidárias como o nosso, ela é perigosa porque reforça tendências de personalização que são nocivas à saúde democrática e ela é obstrutiva de uma verdadeira reforma política necessária para Portugal.

A eleição directa do primeiro-ministro é redundante porque já existe a eleição directa de líder partidário no PS, PSD e CDS. A partir de uma mudança iniciada pelo PS em 1998, e copiada depois por PSD e CDS, todos os líderes partidários destes partidos têm sido eleitos pelos militantes. Que são depois os candidatos a primeiro-ministro. Além disso, as primárias são redundantes também porque visam reforçar o poder do primeiro-ministro quando essa já é uma marca absolutamente central do nosso sistema político. Desde a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, ganha em 1987, que se operou um reforço do chefe do Governo. A estabilidade governativa acrescida levou a uma reestruturação dos serviços de apoio ao primeiro-ministro, e – de forma mais preocupante – a uma governamentalização dos principais partidos.

Na medida em que as eleições primárias reforçam a personalização do poder do primeiro-ministro elas são perigosas. Porque desequilibram o poder ainda mais a favor do primeiro-ministro no que já é um sistema excessivamente personalizado. As eleições legislativas tornaram-se uma escolha de primeiro-ministro. Em resultado, o primeiro-ministro, uma vez eleito, compõe o Governo com recurso a independentes sem qualquer lastro partidário, contribuindo para a marginalização do Parlamento como órgão de recrutamento ministerial. Ao mesmo tempo, leva os membros do Governo escolhidos por si, para encabeçar os órgãos de topo do partido. Em vez de os partidos representarem a sociedade civil nas instituições políticas, estes são dominados pelo líder, e esvaziados de qualquer poder. Esta proposta é, além disso, perigosa porque pode levar outros partidos a copiar o PS à semelhança do que ocorreu com as directas para líder. Não vá alguém acusá-los de excluir os “simpatizantes”.

Finalmente, as primárias no PS estão a obstruir outro debate, esse sim urgente, sobre a reforma do sistema político em Portugal. Ser a favor da reforma dos partidos não pode significar ser a favor da “americanização” dos partidos: isto é a sua transformação em simples rótulos a ser utilizados por candidatos que queiram fazer política. Isso leva-nos a uma democracia onde só existirão candidatos a líder e “simpatizantes”, mediados pela comunicação social e dinheiros de origem duvidosa. Os partidos portugueses têm anquilosamentos? Sim. Têm problemas? Muitos. Mas não é reforçando a componente de personalização do líder que se resolve esta questão. Precisamos de abertura à sociedade civil que sirva para reforçar os laços de representação e não que contribuam para um desequilíbrio ainda maior entre quem tem poder político (as lideranças partidárias e o Governo) e quem não o tem (os militantes e o Parlamento). Precisamos de uma reforma do sistema eleitoral que aproxime os eleitores dos eleitos. É que, antes de se preocupar com os simpatizantes, talvez os partidos se devessem lembrar dos abstencionistas.

Este artigo é dedicado à memória de David B. Goldey (1936-2014).


Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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