domingo, 23 de março de 2014

Le Pen a caminho de Bruxelas. Partido de Le Pen conquistou uma câmara e ganha em sete municípios. A Europa e o refascismo. / Rui Tavares.

Le Pen a caminho de Bruxelas
Editorial / PÚBLICO

A Frente Nacional francesa não tinha até hoje um único presidente da câmara. Neste momento, já tem um garantido e sete vitórias para disputar na segunda volta. Não teve os resultados que queria, mas iniciou uma fase de recuperação. A extrema-direita ganhou porque os franceses não confiam nos políticos e sentem-se ignorados pelos partidos, ganhou por causa dos escândalos à esquerda e à direita, e ganhou porque Marine Le Pen, herdeira de Jean-Marie Le Pen, tem o talento do pai para arrebatar multidões, mas a inteligência de não ser odiosamente radical. Tornou-se o estranho paradoxo de ser uma espécie de extremistasensata, invenção para o que às vezes chamamos “populista”. Le Pen inicia assim, em melhores condições do que o seu “colega” holandês, a rampa de lançamento para as europeias, nas quais os eurocépticos, os extremistas de direita e os populistas não alinhados se preparam para mais do que duplicar a sua força no Parlamento Europeu.

Marine Le Pen e Steeve Briois, o novo presidente de câmara de Hénin-Beaumont
Partido de Le Pen conquistou uma câmara e ganha em sete municípios
CLARA BARATA 23/03/2014 - 20:36
Primeira volta das eleições autárquicas francesas corre de feição à Frente Nacional. UMP recusa apoiar candidatos da esquerda na segunda volta.

Com uma abstenção que terá chegado pelo menos a 38,5%, sete candidatos do partido de extrema-direita de Marine Le Pen estão à frente nas contagens iniciais dos votos da primeira volta das eleições municipais em França.

Em Hénin-Beaumont, o município de 26 mil habitantes do Norte do país pelo qual a própria Le Pen se candidatou como deputada nas últimas legislativas – sem sucesso, embora por pouco – o candidato da Frente Nacional (FN), Steeve Briois, é dado como o vencedor, com 50,26%. Nem sequer precisará de ir à segunda volta, marcada para o próximo domingo, 30 de Março.

Noutras cidades onde se candidatam figuras mais mediáticas da FN, os primeiros resultados estão igualmente a ser-lhe favoráveis. As previsões apontam que em Forbach, Florian Philippot, vice-presidente e estratega do partido, terá 35,75%, contra 33% do presidente da câmara socialista que estava no poder. Em Perpignan, Louis Aliot, vice-presidente e companheiro de Marine Le Pen, terá 34,4%, avança o Le Monde. Está à frente do candidato da UMP, o grande partido do centro-direita, que tem 29,8%.

As grandes tendências nacionais, aponta o canal de notícias BMTV, são para um total de 48% para a UMP, 43% para a esquerda e 7% para a FN - um valor alto, dado que os frentistas só apresentaram 597 listas para os 36 mil municípios franceses.

Najat-Vallaud Belkacem, ministra porta-voz do Governo, deu indicação sobre o que fará o seu partido : "A posição do PS é muito clara: Faremos tudo o que for possível para impedir que um candidato da FN obtenha um município”.

David Assouline, porta-voz do Partido Socialista, lamentou “a abstenção importante e a “subida inquietante” da Frente Nacional, numa declaração à AFP. Apelou à “mobilização dos abstencionistas de esquerda” para irem votar na segunda volta.

Na segunda volta, em que podem ir a votos os três – ou, em casos mais raros, os quatro – candidatos mais votados, para discutir quem ganhará a câmara, o candidato da UMP poderá escolher apoiar o do PS, se este tiver mais hipóteses de ganhar, face ao desafio de um candidato da Frente Nacional. E vice-versa. Isto é o que se tem passado, historicamente – fazia parte da estratégia de contenção do avanço deste partido de extrema-direita e xenófobo.

Só que nos últimos anos esta estratégia de defesa dos valores da República francesa está a fraquejar – as sereias do canto de Marine Le Pen enfeitiçam também o centro-direita, e a UMP divide-se sobre o que fazer. Nas últimas eleições, o que o líder da UMP defendeu foi a estratégia do “nem-nem”: ou seja, em caso de triangulares, não apoiar nem um candidato da FN nem um candidato socialista. E desta vez está a dar a mesma indicação.

Aos microfones da televisão France 2, Copé confirmou que o seu partido não dará indicação a “votar pelo PS, aliado da Frente de Esquerda” na segunda volta. Se por um lado tenta evitar confundir-se com os socialistas – precavendo-se contra a acusação de “amálgama” com o PS que Marine Le Pen faz à UMP –, deverá dividir mais o eleitorado, facilitando o avanço da FN.


A noite eleitoral está a correr de feição para Marine Le Pen, que até agora não tinha implantação nenhuma no poder local. “A FN é uma grande força nacional. Ficar à frente num tão grande número de municípios é a prova de que a FN se está a implantar de forma durável.”

A Europa e o refascismo
Rui Tavares / 24-3-2014

Quando se pensa no fascismo, os países que vêm normalmente à cabeça são a Itália, em certo sentido a Alemanha, também Portugal e a Espanha. A certa altura dos anos 30 e 40, regimes aparentados ao fascismo dominavam no continente europeu, em particular no Leste, onde estavam na Polónia e na Eslováquia, na Hungria e na Roménia. Em 1936, apenas, a Frente Popular deteve a chegada do fascismo à França e é talvez por isso que não pensamos muito na França quando pensamos no fascismo.
E no entanto, foi na França que durante o meio século anterior foram germinando as sementes de ideias que depois ganhariam esse nome. O antissemitismo moderno, com a eclosão do caso Dreyfus no fim do século XIX e a imprensa mais raivosamente antijudaica da Europa no início do século XX; o antiparlamentarismo de Sorel, que depois de passar da esquerda para a direita se tornou num precursor do nacional-socialismo; o revanchismo dos monárquicos e defensores do “organicismo” da nação; o pétainismo e o culto do salvador da pátria; e, muito, em particular, o integralismo de Charles Maurass, tido por ser uma das principais influências de Salazar. Tudo isso nasceu em França, muito disso ficou em estado larvar.
Saltemos de século. Desde 2001 que temos tido a infelicidade de ver todos os partidos estabelecidos da V.ª República Francesa, da esquerda à direita, estenderem a passadeira à Frente Nacional. Desde logo quando toda a esquerda se dividiu para deixar passar JeanMarie Le Pen à segunda volta das presidenciais. Depois, quando a direita de Sarkozy adotou todos os grandes temas da extrema direita. E agora, com esse completo vazio de ideias — sobre a França, sobre a Europa ou sobre a democracia — que se chama François Hollande.
O resultado viu-se ontem, nas eleições municipais francesas. A Frente Nacional voltou a ganhar uma cidade no Norte, que já foi bastião comunista e socialista. Em Avignon e Fréjus vai para a segunda volta à frente. E em Marselha, o segundo município mais populoso do país, está à frente da esquerda e disputando a cidade com a direita.
Isto é uma primeira volta; quando os franceses voltarem às urnas a história será um tanto diferente. Mas isso importa pouco, porque a tendência é clara. Hoje, a filha do pai, Marine Le Pen, é presença permanente em todos os media franceses. As suas ideias tornaram-se plausíveis e pseudorrespeitáveis; concordam com ela entre um quarto e um terço dos franceses. O voto popular passou da esquerda para a Frente Nacional. Para todos os efeitos, há hoje em dia três polos: a esquerda, a direita, e a Frente Nacional. Começa-se a desconfiar de que esta caminhada só vai parar no Palácio do Eliseu. Com ela acabará a V.ª República Francesa, e não só: acabará definitivamente uma certa ideia da Europa do pós- guerra.
Isto não se passa só em França. Gente defendendo as mesmas ideias estão no governo da Áustria ou da Letónia e apoiam os governos da Holanda ou da Suécia. Na Itália, a antipolítica de Grillo sobe nas sondagens.
Chamem-se fascistas ou não, o que esta gente tem de comum é uma insinceridade e deslealdade de base em relação à democracia. A democracia só lhes interessa para manipular até chegar ao poder. E uma democracia sem ideias abre-lhes o caminho. Uma democracia que não acredite no futuro pode bem acabar por não o ter.

Sem comentários: