quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Um cortejo fúnebre pela ciência. “Portugal pagou os meus estudos e eu vou ter de aplicá-los lá fora”. 4 em cada 10 jovens sem dinheiro para estudar



Um cortejo fúnebre pela ciência
NICOLAU FERREIRA 21/01/2014 – in Público

Cerca de mil pessoas manifestaram-se contra as políticas da Fundação para a Ciência e a Tecnologia em Lisboa. Polícia impediu candidatos a bolsas de entrarem na Loja do Cientista, na sede da fundação.
Gritos, assobios, berros. Já passava das 17h quando os bolseiros, candidatos bolseiros e elementos da comunidade científica fizeram-se ouvir nesta terça-feira na Avenida Carlos I em Lisboa, em frente à sede da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). “Bolseiros em luta, Crato para a rua”, “Incompetência está aí, excelência está aqui” ou “Demissão! Demissão!” Por esta altura, já os chapéus-de-chuva estavam guardados, e parte das cerca de mil de pessoas foram-se indo embora na manifestação marcada pela Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), depois de se ficar a saber na última quarta-feira os cortes nas bolsas individuais de doutoramento e de pós-doutoramento da FCT.

Mas o momento de tensão ainda estava para ocorrer, quando foi pedido a todos os candidatos que não conseguiram as bolsas que entrassem na Loja do Cientista, na FCT, para pedir as actas de avaliação das candidaturas, para fazerem um pedido de audição. Nesse momento, quando dezenas de candidatos se dirigiram para a loja, caminhando pelo passeio junto à sede da fundação, cerca de uma dezena de polícias bloqueou a passagem. Pouco após as 17h30, depois do fechdo da Loja do Cientista, os cerca de 200 manifestantes que restavam desmobilizaram. A mensagem estava dada.

“Eles perceberam que não vamos ficar calados”, disse Maria Dávila, bolseira da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa e que pertence à ABIC. “Isto não é comportável, esta gente que está aqui não tem outra forma de sustento”, explicou aos jornalistas. No concurso individual de doutoramento e pós-doutoramento, 5190 pessoas não obtiveram financiamento. “Para o ano serão mais”, avisa a bolseira de doutoramento, quando a concentração de pessoas já se tinha dirigido para uma rua ao lado, perto da residência oficial do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.

A manifestação tinha-se iniciado no passeio oposto à sede da FCT. Passavam poucos minutos das 15h já uma pequena multidão estava aglomerada, chapéus-de-chuva abertos, chuva sem parar.

“Desde a década de 1990 que a FCT investiu mais de um milhão de euros em mim, entre projectos e bolsas”, desabafa Francisco Moreira, professor e investigador na  na área da conservação da natureza no Instituto Superior de Agronomia (ISA), em Lisboa. “Ainda tenho uma bolsa até Maio, graças a projectos a que me candidatei. Depois disso, não sei”, diz este pós-doutorado com 48 anos, a trabalhar no ISA desde 1997. “O que o nosso ministro nos manda é sair do país. É muito triste, estas pessoas ou ficam sem dinheiro ou vão mostrar as suas competências ao serviço de outro país.”

Ao seu lado, Ana Isabel Queiroz, professora na FCSH, que ganhou este ano uma bolsa do concurso Investigador FCT na área da história, desconstrói a exaltação da excelência que se tem ouvido por parte dos responsáveis do ministério da Ciência: “As pessoas foram apoiadas no passado porque foram respondendo ao que lhes era pedido, foram produzindo. Não deixaram de ser excelentes de um momento para o outro.”

Rui Rebelo, professor de biologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, está ali pelos seus alunos: “Como professor, deixei de me sentir confortável em dizer aos meus alunos para seguirem uma carreira científica. É virtualmente impossível seguir o processo normal de licenciatura, doutoramento, pós-doutoramento.”

Quando a manifestação seguiu até à residência do primeiro-ministro parecendo um cortejo fúnebre, onde quatro figuras cobertas por um manto preto, como a morte, e com a cara tapada com as fotografias de Pedro Passos Coelho, Nuno Crato (ministro da Educação e Ciência), Leonor Parreira (secretária de Estado da Ciência) e Miguel Seabra (presidente da FCT), levavam um caixão de madeira, com a parte de cima coberta com um plástico preto. Aí lia-se: “Aqui jaz a ciência.”

“Esta manifestação é para dar um sinal claro e inequívoco de que esta situação não pode continuar”, diz Joana Campos, do grupo dos bolseiros dos Precários Inflexíveis (PI). “A política de investigação e ciência promovida pelo Governo não tem aceitação na comunidade científica, os cortes aplicados pelo Governo estão a dar cabo de toda a investigação construída durante décadas.”

De 2012 para o de 2013, houve uma redução de cerca de 65% de bolsas de pós-doutoramento atribuídas e de 40% de doutoramento, tendo em conta, nestas últimas bolsas, os novos programas doutorais da FCT.

Para a ABIC, os resultados das bolsas são “uma razia” e mostram uma “política de desinvestimento e de abdicação de defesa dos interesses nacionais em detrimento das opções ditadas em esferas internacionais”. À concentração uniram-se outras organizações como os PI e a Plataforma em Defesa da Ciência e do Emprego Científico. Associações de estudantes de algumas universidades como a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa também se associaram ao protesto. Investigadores do Instituto de Biologia Molecular e Celular, um laboratório associado do Porto, estavam presentes. Do Porto, Coimbra e Aveiro vieram entre 170 e 180 pessoas, de acordo com a ABIC.

Desde a última quarta-feira, várias personalidades do mundo científico, como Alexandre Quintanilha, Carlos Fiolhais, Manuel Sobrinho Simões, Diogo Ramada Curto, Miguel Soares, António Costa Pinto, criticaram as políticas científicas do actual Governo. Alexandre Quintanilha, professor da Universidade do Porto e secretário do Conselho dos Laboratórios Associados (uma rede de 26 laboratórios espalhada pelo país), referiu mesmo: “Se a comunidade científica não perceber nesta altura que isto é um ataque geral à grande maioria dos investigadores no país e se não se unir para ver se consegue alterar esta situação, então teremos aquilo que merecemos”, disse, citado pela agência Lusa.

No PÚBLICO, uma carta aberta dirigida a Nuno Crato, ministro da Educação, Ciência e Ensino Superior, Manuel Sobrinho Simões, Diogo Ramada Curto e António Costa Pinto, três investigadores e professores, dizem que “os critérios e os processos de avaliação dos concursos da Fundação para a FCT têm-se revelado pouco claros e transparentes”. Acrescentam: “Sobretudo, a avaliação dos concursos de 2013 causou situações de uma injustiça gritante que urge resolver. As constantes mudanças de regulamentos, a falta de planificação, as permanentes alterações dos prazos, e a confusão burocrática anexa, caracterizam infelizmente os programas que têm sido lançados, ao que acresce o perigo de regresso a um modelo clientelar e não meritocrático de avaliação pelos pares”.

Nesta terça-feira, a Lusa noticiou que foi chumbado o requerimento do PCP para a audição de Nuno Crato e de Leonor Parreira na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura sobre o concurso de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento. Mas a requisão do Bloco de Esquerda para uma audição de Miguel Seabra, na mesma comissão, foi aceite.


“Portugal pagou os meus estudos e eu vou ter de aplicá-los lá fora”
A Fundação Ciência e Tecnologia reduziu o número de bolsas individuais atribuídas este ano. O P3 ouviu um dos 2072 investigadores que não foram contemplados com bolsas de pós-doutoramento. Quais planos para o futuro?
Texto de Amanda Ribeiro • 20/01/2014 in P3 / Público

"Não ganhar a bolsa foi um golpe emocional muito grande. Aquilo que mais custou admitir na recusa do projecto, de que ainda vou recorrer, foi a não argumentação. De acordo com a avaliação, o projecto é excelente, mas mesmo assim não dão a bolsa. É a humilhação de nos dizerem que somos bons, que valemos a pena, mas que não podemos ser financiados. Não estou de mal com a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), até porque me financiaram o doutoramento, mas é doloroso. É uma dor — e dói mesmo.

[De acordo com dados provisórios recolhidos pela Associação de Bolseiros de Investigação Científica], este ano foram atribuídas cinco bolsas em Estudos Literários e Linguística. Sem dúvida que as ciências exactas são mais compreendidas enquanto ciência, mas o corte foi transversal, idêntico em todas as áreas, e também há menos gente a fazer investigação em Ciências Humanas. Às vezes tenho de explicar o que raio estou a fazer a colegas de Engenharia. O conhecimento da nossa história, da nossa literatura, da nossa cultura é tão fundamental como compreender como reagem determinados elementos químicos para fazer um novo produto. Investigar em estudos culturais é perscrutar o coração de uma sociedade, de uma cultura.

Faço parte de um grupo chamado Seminário Medieval de Literatura, Pensamento e Sociedade que pertence ao Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). É um grupo bastante coeso e estamos a fazer bastante investigação, temo-nos internacionalizado muito e são as bolsas que o permitem. Por muito que gostemos, há que pagar as contas, há que ter uma vida própria, que comer, que viajar muito para ir a congressos, fazer pesquisa em bibliotecas.

Eu, agora, felizmente, estou num projecto de investigação na área da Filosofia, que envolve a transcrição e a análise de manuscritos sobre comentários do “De Anima” de Aristóteles. Este projecto termina a 30 de Junho e depois ia começar o “pós-doc”. Agora é um mistério. Vou recorrer dos resultados — a 1.ª fase para contestar é até 28 de Janeiro — mas isto vai demorar meses, demora sempre meses. São meses que passam...

O que eu posso fazer aqui é continuar a concorrer a projectos exploratórios deste tipo, que são anuais, às vezes nem isso, sem nenhum projecto individual em que eu seja responsável pela investigação. Mas para evoluirmos enquanto investigadores temos de ter um projecto próprio e grande, do qual somos inteiramente responsáveis. Nós fazemos falta às universidades. Na FLUP há poucas pessoas e os bolseiros dão apoio, podem dar algumas aulas, dão outro “insight” que os professores não têm. Perde-se qualidade no ensino. E variedade.

Dar filhos para o estrangeiro
Sou sincera. A minha primeira reacção quando soube [os resultados] foi “eu vou-me embora daqui”. E eu não quero ir embora de Portugal, atenção. Sou teimosa. Chorei, fiquei desolada porque não quero embora. Mas se eu não puder ser bolseira de projectos mais pequenos — que são sempre a prazo, é difícil planear a vida — vou ter de ir lá para fora. Sempre disse só ia quando me dessem um pontapé ou me pusessem uma faca nas costas — o que torna tudo mais perverso. Nós fomos formados em Portugal: o ensino básico, a licenciatura, o mestrado, o doutoramento, financiado pela FCT. O nosso resultado académico depende muito do ensino público. O meu país pagou os meus estudos e eu agora vou ter de dar a render aquilo que aprendi aqui lá fora.

Isto está a ficar cada vez mais um país de velhos que nem serve para os velhos. No meu caso, tenho 29 anos, há coisas que gostava de poder fazer e sei que não posso porque não tenho essa estabilidade. Não posso pensar em constituir família. E como eu há pessoas que estão em situações ainda mais graves. Vamos lá para fora e as crianças que temos também ficam lá fora. É quase um país que está a dar filhos para o estrangeiro, sobretudo os mais qualificados, os que tiveram uma formação de topo. E chegamos lá fora e somos reconhecidos.

Sim, eu tenho outras competências e sei fazer outras coisas, mas se chego a uma empresa para trabalhar como secretária com 29 anos e um doutoramento dizem que não sei fazer nada. Em qualquer outra área, fora da investigação, acham que uma pessoa esteve a passear, que não trabalhou a sério. Uma pessoa que tem um doutoramento para que serve? Ainda para mais nesta área?

Não me habituo à vida a termo e dói-me muito, mas não me vejo a largar a investigação. É uma paixão, e quando se faz um trabalho com gosto ainda produzimos mais. Deixar a investigação não, mas estou farta de viver a curto-prazo. Mesmo a bolsa de pós-doutoramento dura, no máximo, seis anos, e não é garantido porque a renovação é anual. Não vou deixar de fazer investigação na minha área, mas provavelmente só lá fora. Sou filha única e vim morar para junto do meu pai, ele tem problemas de saúde. Eu não queria abandonar os meus pais, queria poder usufruir do tempo que tenho com eles, que ainda vai ser muito, claro. A nível emocional, parece que temos de andar a fazer uma jigajoga para conseguir combinar as nossas vidas com as das outras pessoas para podermos comer. O que eles querem de nós é que andemos a correr o mundo com três filhos às costas."


4 em cada 10 jovens sem dinheiro para estudar
por Lusa, editado por Ricardo Simões Ferreira in DN online / 21/01/2014

Portugal tem uma das mais altas percentagens de jovens que queriam prosseguir os estudos, mas não têm possibilidade de os pagar (38 por cento, cerca de 4 em cada 10), revela um inquérito patrocinado pela Comissão Europeia que é hoje apresentado em Bruxelas.
O estudo incidiu em 5.300 jovens, 2.600 empregadores e 700 instituições educativas de oito países da União Europeia: França, Alemanha, Grécia, Itália, Portugal, Espanha, Suécia e Reino Unido.
Intitulado "Educação para o Emprego: Pôr a Juventude Europeia a Trabalhar", o designado relatório McKenzie sublinha que entre os oito países estão as cinco maiores economias da Europa (Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Espanha), dois dos países mais afetados pela crise (Grécia e Portugal) e um da Escandinávia (Suécia).
No conjunto, estes países têm perto de 75 por cento do desemprego jovem na União Europeia a 28.
O valor das propinas pago pelos estudantes nas universidades públicas ultrapassa os mil euros por ano e o relatório indica outro fator que eleva as despesas: a deslocação da área de residência. "45 por cento dos jovens tem de sair da sua cidade para continuar a estudar".
Neste inquérito, um terço (31 por cento) dos jovens portugueses declarou não ter tempo para estudar porque tinha de trabalhar, o valor mais elevado entre os países analisados.
Além da situação económica, em geral, é também afirmado que "problemas com o sistema de educação-emprego não estão a ajudar", já que "apenas 47 por cento dos jovens acredita que os seus estudos pós-secundário melhoraram as perspetivas de emprego".
Os empregadores, por seu lado, dizem que não encontram as qualificações que precisam. Trinta por cento relatou não preencher vagas porque não encontrar um candidato com as competências adequadas.
"As coisas estão obviamente quebradas no percurso educação para o emprego em Portugal", concluem os relatores.
No documento, refere-se que Portugal "sofreu muito durante a recessão", com a taxa de emprego global a cair quase 8 pontos percentuais e o desemprego entre os jovens a subir para 37 por cento.
O relatório é apresentado hoje em Bruxelas numa conferência que tem como principal oradora a comissária Androulla Vassiliou, responsável pela Educação, Cultura, Multilinguismo e Juventude.
De acordo com a comissária, o relatório da consultora McKenzie não podia estar mais atual: "Na Europa, o desfasamento entre aquilo que os sistemas de educação oferecem e as necessidades dos empregadores está a resultar numa séria escassez de competências, a prejudicar as aspirações da juventude e, por último, a nossa prosperidade futura".


O relatório contém "uma mensagem clara", lê-se no documento que enquadra a iniciativa: "Políticos, educadores e empresários devem todos sair dos seus silos e colaborar mais estreitamente para evitar o que é uma crise de crescimento".

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