domingo, 22 de dezembro de 2013

Numa época de tablets e consolas, os soldadinhos de chumbo ainda têm o seu lugar


Numa época de tablets e consolas, os soldadinhos de chumbo ainda têm o seu lugar
ANDRÉ VASCONCELOS E SÁ ((texto)) e DANIEL ROCHA ((fotos)) 21/12/2013 in Público

É uma loja de brinquedos onde convive o antigo e o moderno. Nesta viagem no tempo, ruma-se à infância dos nossos pais, avós ou mesmo à nossa.
A cave não cheira a cave. O aroma é diferente. É bom, macio, doce. Para os clientes mais antigos é sinónimo de tempo bem passado, em boa companhia, no meio de todos aqueles brinquedos. Os primeiros passos fazem-se por um estreito corredor com estantes dos dois lados, ao fundo do qual se avista a secretária de Carlos Cutileiro, o dono da Casa do Cavaleiro à Porta, em Lisboa.

E o cavaleiro estava mesmo lá, à porta, na entrada do prédio de uma rua movimentada do bairro de Benfica. Mas já não está. Segundo Carlos Cutileiro, o sinal foi retirado por duas razões: pelo seu estado deteriorado e porque o valor do seguro e da licença subiu em flecha há um ano.

Era um dos símbolos do estabelecimento, especializado nos emblemáticos soldadinhos de chumbo. No inventário também se podem encontrar combóios eléctricos, modelos de tanques ou de aviões para montar, revistas da especialidade e todo o tipo de brinquedos antigos. O cartão de visita dissipa todas as dúvidas: tem “tudo para modelismo e maquetismo”. Dentro da loja ainda existe um atelier para reparação e restauro.

A porta de entrada da loja foi apelidada de “Porta Magna”, pelo pai de Carlos Cutileiro, Alberto Cutileiro. É uma porta comum de madeira, ornamentada dos dois lados. Do lado de fora, o que recebe os visitantes, está uma figura em relevo de um cavaleiro medieval que convive, um tanto inesperada e anacronicamente, com inúmeros autocolantes de marcas de brinquedos.

Abrir a porta é como entrar na Terra do Nunca ou no País das Maravilhas. Vêem-se vitrinas repletas de figuras militares, minúsculas pessoas armadas até aos dentes, prontas a alistarem-se no nosso exército particular. Pelo tecto voam modelos de aviões, imóveis. Nas paredes vislumbram-se uniformes militares e outras gravuras. Nas estantes e prateleiras estão as caixas com os aviões, helicópteros, tanques de guerra, carros de colecção ou de corrida, divididos em centenas de peças, à espera de serem montados para se transformarem numa réplica perfeita.

Frederico da Prússia e Napoleão
Algumas dessas caixas já estão abertas para facilitar o contacto directo a quem queira sentir nas próprias mãos a magia daqueles brinquedos. Normalmente são os filhos dos clientes, a quem os pais querem mostrar com o que brincavam na sua infância. Alguns apaixonam-se, outros nem tanto.

Os jogos de estratégia, assentes nas figuras militares, surgiram em meados do século XVIII. Foi Frederico da Prússia o pioneiro da temática, quando começou a usar pequenas figuras de soldadinhos de chumbo para simular estratégias de guerra.

Um pouco mais tarde, também Napoleão se tornou um aficionado, um dos maiores até. Era detentor de um exército enorme de figuras feitas em estanho, que foi leiloado algum tempo após a sua morte. Para oferecer ao filho, mandou fundir a um dos melhores gravadores franceses da altura, um regimento inteiro com milhares de peças, em prata. Diz-se que a colecção se perdeu com o passar do tempo. Winston Churchill e Abraham Lincoln também estão entre os notáveis aficcionados destas figuras.

Hoje em dia já não é entre políticos e militares que se encontram os coleccionadores mais famosos. Curiosamente eles estão no cinema (os cineastas Steven Spielberg e Peter Jackson, e os actores Russel Crowe e Mike Myers), na música (Phil Collins e Rod Stewart) e no mundo da finança (Malcolm Forbes, o filho do fundador da revista Forbes).

O maquetismo, nomeadamente o das figuras militares, tem vindo a perder adeptos. A culpa é dos computadores e da Internet. Os jogos de estratégia militar vieram substituir as maquetes e as figuras. A procura de publicações relacionadas com estes assuntos também já é bastante facilitada pela Internet. Outrora, era uma das bandeiras da Casa do Cavaleiro à Porta, quando Carlos Cutileiro as importava de Londres. A mudança dos tempos está à vista de todos.

A loja é pequena. Mas não é por acaso. A visão de Carlos Cutileiro tem desde sempre um propósito maior: a partilha. E o espaço reduzido da loja potencia a comunicação e a partilha de conhecimentos entre cada um dos clientes e aficionados. Para ele, só assim estas temáticas fazem sentido. Diz que aprendeu a partilhar ideias e opiniões sobre maquetismo com os ingleses, durante a sua estadia em Londres: “No que toca à minúcia e ao debate de ideias na construção de maquetes ou modelos, os ingleses não guardam segredos. Em Portugal as pessoas gostam de se isolar, o que impede uma evolução mais rápida de cada um”.

Tertúlias e encontros
As tertúlias na loja aconteceram naturalmente, desde a sua inauguração, em 1972, chegando a reunir 20 ou 30 pessoas, principalmente nas tardes de sábado. Até chegaram a ser estendidas a cafés da cidade, como por exemplo o Martinho da Arcada, na baixa lisboeta. Devido à crescente adesão, tiveram que alugar um espaço do outro lado da rua, no centro paroquial. Chegou até a ser criada uma associação de modelismo, que durou pouco tempo.

Desde essa altura que existem encontros esporádicos, em Tróia e na Moita, por exemplo. São exposições de modelismo e maquetismo, onde se pode divulgar, vender, comprar, ou partilhar tudo o que tenha a ver com aquelas áreas. A adesão é grande, nomeadamente aficionados vindos de Espanha, país que sempre teve muita tradição nestes assuntos.

Entre os clientes mais emblemáticos da loja, Carlos Cutileiro destaca o "Panzer Freitas". Era um assíduo frequentador da casa, obcecado pelo período da 2.ª Guerra Mundial. Coleccionava modelos de carros blindados e tanques alemães, e conhecia, comprovadamente, as siglas de cada modelo. Noutra vertente, a do espólio popular, era o poeta Azinhal Abelho, colaborador do Palácio Foz, que detinha uma impressionante colecção de figuras de barro. Também o irmão do historiador José Mattoso era um frequentador da loja e coleccionava figuras militares e dioramas (telas pintadas, que quando iluminadas, dão a impressão de tridimensionalidade).

De pais para filhos
A Casa do Cavaleiro à Porta deve o seu nome à loja que o avô de Carlos Cutileiro tinha na baixa de Lisboa, a Papelaria Verol e Companhia, que era mais conhecida como Casa do Militar à Porta. Tinha um boneco à entrada, de terracota, e, entre artigos comuns de papelaria, editava e vendia folhas de soldados de papel, que custavam meio tostão. “Era muito conhecida pela juventude daquela época”, recorda o neto.

Alberto Cutileiro, pai de Carlos, trabalhou na Verol até o seu pai morrer. Nessa altura, foi convidado para trabalhar no Museu da Marinha e ficou sem tempo para a loja. A casa fechou. O espólio foi dividido entre ele e a irmã. Coube-lhe ficar com a parte que mais dominava, o acervo militar e histórico, o qual serviu como base para Carlos Cutileiro abrir o Centro de Coleccionadores – Casa do Cavaleiro à Porta.


Está na hora de sair, a Porta Magna também está enfeitada do lado de dentro. Foi Alberto Cutileiro quem teve a ideia de fazer conviver várias figuras políticas relevantes noutros tempos, como Hitler, Mussolini ou Napoleão, todos ridicularizados naquele rectângulo de madeira. Conta Carlos Cutileiro que ofereceu o busto do general francês, que lá figurou durante décadas, ao seu filho. O boneco tinha inscrito a seguinte pergunta: “Porque é que Napoleão teve sempre a mão escondida?”. A resposta era dada a quem puxasse um pequeno cordel: levava com um manguito, num gesto bem à portuguesa.



















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