quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O futuro constrói-se defendendo o passado: de São Bento de Cástris à Colina de Santa Ana


"Não é verdade o que diz um senhor olisipógrafo (PÚBLICO de 17-IX): só existem duas opções quando se trata de intervir nestes espaços patrimoniais (por sinal, em parte classificados), "ou se deixa como está por ditame de um patrimonialismo serôdio", ... "até que o tempo se encarregue de esfriar os afectos", ou se avança com projectos e funcionalidades previamente determinadas, mesmo que estas apaguem as "memórias valorativas" dos espaços"

O futuro constrói-se defendendo o passado: de São Bento de Cástris à Colina de Santa Ana

São Bento de Cástris, em Évora, é um velho mosteiro cisterciense começado a construir em 1328, remodelado nos séculos XV e XVI e, de novo, no último terço do século XVIII. Apesar de fases de abandono, está ainda praticamente incólume nas suas valências, com igreja, claustro gótico-mudejar, capítulo, refeitório, livraria, dormitórios, alas de serviço e cerca murada de mais de trinta hectares, e mostra uma situação privilegiada, num outeiro a três quilómetros de Évora, com vista esplendorosa sobre o centro histórico.
De há muito classificado como Monumento Nacional, trata-se de um dos imóveis monacais de referência (com a Cartuxa, São Francisco, o Espinheiro), tanto assim que, após o estudo histórico-artístico de 1957-66 por Túlio Espanca, contribuiu para a classificação, pela UNESCO, de Évora como Património Mundial. Após a morte da última freira (1890), passou para a Fazenda Nacional, viu património móvel ser-lhe desafectado e novas construções erguidas, sofreu iconoclastias, esteve na posse do Governo Civil de Évora e da Casa Pia, e neste vaivém de reapropriações, atribulações e silêncios houve sempre, apesar de tudo, um esforço de proteger as valias arquitectónicas e as remanescências artísticas. Em anos recentes, por esforço da Direcção Regional de Cultura do Alentejo, dirigida por Aurora Carapinha, procedeu-se à cobertura integral dos corpos edificados, estancando-se infiltrações, e conseguiu-se reanimar a zona agrícola da antiga horta das monjas, através de experiências comunitárias, ímpares entre nós, que justificam atenção por criarem pólos de rentabilização do conjunto. Os espaços do mosteiro passaram também a albergar congressos, debates, espectáculos musicais e de teatro, como acaba de suceder com uma iniciativa da Universidade de Évora destinada a estudar São Bento de Cástris (arquitectura, vida monástica, pintura, frescos, azulejos, literatura no feminino) e analisar reutilizações futuras, que só podem mesmo ser plurais e polivalentes, incluindo funções de hospedaria e turismo cultural, mas sem perda do seu "espírito de lugar", albergando centros universitários, laboratórios científicos e outros serviços, autárquicos, públicos e privados.
O que se faz em São Bento de Cástris, anunciando um caminho de revitalização sem amputar partes do existente, pode servir de reflexão para o que tem envolvido o destino dos quatro ex-hospitais da Colina de Santa Ana. Este assunto tem feito correr rios de tinta, maioritariamente a favor de uma cega lógica especulativa de "rentabilização a todo o custo", como se os edifícios antigos, por lá estarem, fossem um estorvo para os gabinetes de arquitectura... Seja qual for o destino destes ex-conventos que foram ex-hospitais, eles constituem já, não tenho disso dúvidas, o embrião de um "caso de estudo" que as comunidades do futuro verão à lupa... Relendo as notícias deste jornal, observo que não existem limites para justificar, sem argumentos, a destruição que alguém já decidiu como solução final, com a impunidade que isso acarreta (mesmo que esteja em análise na SEC uma proposta de classificação do ex-Miguel Bombarda, e mesmo que não se respeitem as ZEN dos edifícios classificados...).
A incapacidade de saber intervir com sensibilidade face às existências, e as más decisões pautadas pelo afã do lucro, originam atentados patrimoniais sem remissão, e este é de tão grandes proporções que tem de ser tratado em outro contexto. Refiro-me tão-só à componente patrimonial e histórico-artística, por julgar dever fazê-lo, mas não esqueço que também as questões de impacto ambiental, descaracterização das zonas e perda de qualidade de serviços e direitos sociais dos moradores são tão importantes como aquela, e deviam ser amplamente discutidas. A ausência de "perspectivas estratégicas" (cuja busca, em princípio, deveria ter envolvido todas as partes, da SEC à DGPE, às universidades, associações de cultura, historiadores, arqueólogos e comunidades, junto à Estamo), está naturalmente arredada da parte de quem, face aos dados conhecidos, apenas pretende destruir sem sofismas para "construir com aval em nome do progresso" (sic).
Mas que progresso é este? Não podemos aceitar que o país histórico que temos só exista na medida de conveniências e grandes interesses previamente definidos. Não é verdade o que diz um senhor olisipógrafo (PÚBLICO de 17-IX): só existem duas opções quando se trata de intervir nestes espaços patrimoniais (por sinal, em parte classificados), "ou se deixa como está por ditame de um patrimonialismo serôdio", ... "até que o tempo se encarregue de esfriar os afectos", ou se avança com projectos e funcionalidades previamente determinadas, mesmo que estas apaguem as "memórias valorativas" dos espaços.
Eu sei que existe, sempre, uma terceira via (como irá haver em São Bento de Cástris, onde o futuro será harmonioso): é certo que as cidades crescem, geram dinâmicas, acumulam novos patrimónios, mas não se imagina um olisipógrafo a sustentar que esse processo se faça destruindo testemunhos precedentes e negando-lhes valia, como no caso dos ex-hospitais civis. Sim, há alternativas, e sustentadas, que passam por nova construção certamente, mas sobretudo pela conservação do existente, tudo concebido e executado com pinças, respeitando as áreas de protecção dos imóveis classificados e suas linhas de evolução, tomando como base a qualidade dos edifícios hospitalares, pensando quiçá hotéis e condomínios mas depois de pensar museus (de Medicina e de Art Brut), laboratórios, pólos de vivenciação cultural... Tudo reflectido sempre em respeito pelo princípio do "espírito de lugar", de que uma cidade como Lisboa não pode prescindir.
Sim, há uma terceira via aos projectos da Estamo, via que equilibre reconstrução com conservação, pontual demolição de excrescências com valorização efectiva do todo, rentabilização de partes com musealização de outras. É o que se espera da parte da CML para o futuro da Colina - e não o cenário apocalíptico que se impõe à opinião pública como facto consumado ("ou nós ou eles"...), nem as soluções radicalizadas ("ou rentabilização plena do terrenos, ou abandono e ruína a médio prazo"...), tudo agravado por práticas que colam bem aos poderosos, como ridiculizar os que generosamente buscam soluções, de que foi alvo Victor Freire por ter ousado fazer um monumental (e incómodo) estudo com proposta de classificação do ex-Convento de São Vicente de Paulo e os corpos hospitalares do Miguel Bombarda (ver PÚBLICO de 17-XI), e eu próprio, visado por um senhor reitor que me ensina que o futuro não se constrói só a defender o passado (PÚBLICO de 21-VIII)... Pois não, mas seguramente não se constrói se alienarmos esse mesmo passado!!!
Existem sempre alternativas quando os agentes sabem destacar o essencial: a dignificação de Lisboa, acima de interesses especulativos e falaciosas argumentações que visam a desmemória do tecido olisiponense. Penso que a classe dos médicos deveria fazer ouvir a sua voz numa questão que lhe tem forçosamente de ser querida: a História da Medicina em Portugal e a sua memória, física e museológica.
No recente congresso no Mosteiro de São Bento de Cástris, foi ouvida a palavra autorizada de Guilherme d"Oliveira Martins, que disse que "o património comum une passado, presente e futuro numa intimidade de interstícios", pelo que "a reabilitação dos lugares históricos só pode mesmo ser cruzada com o sentido da sua dignificação plena". Saber "ouvir o outro" tem de ser considerado como perspectiva aberta que, no caso do património cultural (seja o futuro de São Bento de Cástris seja o da Colina de Santana), só faz sentido se Património, Herança e Memória caminharem de mãos dadas. Gostaria que essa mesma lucidez fizesse doutrina e inflectisse o processo que ameaça, com destruições sem remissão, os ex-conventos de Rilhafoles, Santa Marta, Santo António dos Capuchos e Colégio de Santo Antão. Mas tenho razões para temer que, tal como um Governo que faz pura letra morta da Constituição da República para usurpar direitos adquiridos dos mais fracos, também esta sanha antipatrimonialista esteja blindada com a ideia (defendida no PÚBLICO de 7-IX) de que arrasar as áreas hospitalares não classificadas seria, imagine-se, "um enorme contributo para a valorização de Lisboa" (sic)!
Historiador de Arte; prof. catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa

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