terça-feira, 1 de outubro de 2013

Letra Livre. A última livraria da cidade


Letra Livre. A última livraria da cidade

Por Diogo Vaz Pinto
publicado em 30 Set 2013 / in (jornal) i online

É uma das poucas forças que resistem ainda no labirinto de sombras e espelhos em que se transformou o mercado livreiro e editorial português. Diogo Vaz Pinto conversou com Eduardo Sousa, um dos três responsáveis pela aventura que há seis anos se projectou num dos mais ameaçados terrenos da cultura

É cada vez maior a massa confusa de gente que habita ou, num registo pendular, entope a doce trama de ruas da capital lusa. Um fluxo feroz que transita com uma vontade férrea, sem se perder nem ganhar o pulso a esta cidade com o seu acordar mais tarde do que as outras. Numa Lisboa cujo “coração tem que pulsar através da vigília e do sono” e que é cada vez mais estrangeira à massa que nela se embate, faz sentido que comecemos por oferecer umas coordenadas: se vem do Largo Camões pela Rua do Loreto e pela Calçada do Calhariz, ou então da Calçada da Estrela, passando pela Rua dos Poiais de S. Bento, à esquerda de quem desce e à direita para quem sobe, mais ou menos a meio da Calçada do Combro, no número 139, fica a Livraria Letra Livre.
“Os livros impossíveis.” É com esta frase que se sublinha um dos mais íntegros projectos livreiros que resistem entre o mirabolante concurso de stands editoriais a abundar hoje em Lisboa, já empurradas para a falência ou assimiladas a maioria das casas livreiras que serviam o hábito mais civilizador que o homem alguma vez adquiriu.
Para já ninguém ainda discute que a leitura está na base da formação dos nossos melhores espíritos, mas os números são claros: se cada vez são mais os que lêem, também se lê cada vez mais do mesmo. E como nos explica Eduardo Sousa, um dos três sócios da Letra Livre, cada vez mais os responsáveis pelos conteúdos que vão atolando diariamente os espaços do comércio livreiro são agentes do lucro, funcionários da canseira mercantil que gerem editoras como se se tratasse de “salsicharias”. Ou seja, casas que precisam de se desfazer da sua produção enquanto esta ainda está bem fresca e o seu cheiro não chega a feder denunciando a sua verdadeira natureza.


Já com uma vida dedicada ao subtil cheiro dos livros, o casal Eugénia e Eduardo conheceu Carlos quando trabalhavam os três numa outra livraria, a Ler Devagar – no Bairro Alto,  Rua de São Boaventura, 115. Espaço amplo que, contando com uma galeria de exposições, paralelamente à venda dos livros apostava numa programação cultural alternativa, com leituras, debates, lançamentos de livros, etc. Quando esta fechou, em 2007, os três livreiros viram-se no desemprego. Foi então que arrendaram o número 139 da Calçada, que conta há muito com uma tradição de prestígio no que toca ao comércio dos livros.


Na pequena loja ergueram estantes até ao tecto, ocupando o espaço entre elas com duas ilhas, numa apertada composição com um peso sóbrio, hoje raro, destoando das iluminadas larguezas das superfícies comerciais modernas, com a sua elegância de aeroporto, entre partidas e chegadas de uma cultura cada vez mais internacional e exilar.
A Letra Livre distingue-se, sem ficar por cima nem por baixo, de outros projectos livreiros que tentam combater as facilidades oferecidas pelas grandes cadeias mantendo uma programação cultural, não indo por aí. Sem oferecer circo ou pão, aqui o que há são livros. Usados sobretudo, muitos esgotados, tantos fora de circulação, raros, preciosos, impossíveis ou quase. É um conceito tão simples que parece radical, uma proposta tão clara que não parece deste tempo.


De porta entreaberta para o velho assobio dos eléctricos, um gosto bom e popular na música que sempre se ouve aqui acostumou já quem vem e volta, mas são os livros na sua imensidade que põem uma selva a cantar nesta belíssima gaiola. De fora, basta olhar a montra para começar a receber lições.
Outro livreiro ilustre disse-me certa vez que “a tipografia é uma arte que nasceu velha, ensinada”. Mestre Luís Gomes, que por estes dias se despede com uma compungente tristeza da sua Artes & Letras – uma das livrarias alfarrabistas mais garbosas de Lisboa (Largo Trindade Coelho, 3) –, e que merecia desta cidade uma sincera homenagem.
Ora sem ser grande a montra da Letra Livre é das mais vaidosas, alinhando edições de clássicos nossos ou firmes sugestões da casa, livrinhos que não se deixam ler sem um certo respeito, um deslumbre com papéis que já não se usam e onde a tinta se afundava como se as palavras tivessem outra certeza. Quem partilha a paixão pelos livros saberá quanto estes detalhes estimam a atenção dos leitores. Mas avancemos.


Eduardo, Eugénia e Carlos não são apenas os compositores desta harmoniosa livraria, como são exemplares executantes de uma música antiga. A ideia de serviço, de uma atenção que não se fica pelos trejeitos da mais inócua simpatia, o esforço cuidadoso para responder aos pedidos e às urgências dos clientes para lá das facilidades que a tecnologia assegura, é esse conhecimento e experiência que acima de tudo nos obriga a reconhecer o talento deste trio. Não é apenas o gosto e a enorme familiaridade com os textos, com as edições e os autores, é também uma visão dos livros como elementos-chave da cultura, a sua importância enquanto legado inestimável e acessível.


Passados seis anos, a Letra Livre é hoje também um dos projectos editoriais mais notáveis entre aqueles que se têm afirmado como independentes num período especialmente complicado para quem não encara a edição como uma forma de fazer dinheiro. Sem especial jeito para o negócio, um catálogo que conta com apenas 22 edições (estando já no prelo outras duas) desenha um dos horizontes mais largos no campo editorial português. Com preferência pelos géneros arriscados, do ensaio à poesia, entre os autores publicados pela Letra Livre contam-se Miguel Unamuno, E. M. Cioran, Herbert Marcuse, Elizabeth Bishop, Orlando Ribeiro e Rui Caeiro (poeta nosso que, com uma obra de algumas dezenas de títulos em tiragens reduzidas, permanece praticamente desconhecido, talvez por ser um dos poucos poetas portugueses contemporâneos cuja qualidade supera claramente o que de melhor sobre ele se escreveu).


Eduardo explica que desde o início foi intenção dos três serem simultaneamente livreiros e editores, retomando uma firme tradição de um passado ainda recente, anterior à tendência para a especialização, que viu “aparecerem editores que nunca foram livreiros e livreiros sem qualquer pretensão de editar”. Isto conduziu, diz, a um certo desfasamento entre a perspectiva e o interesses do editor e do livreiro. Mas as alterações substanciais a que foi submetido o pequeno mercado dos livros em Portugal, sobretudo a partir da viragem do milénio, com a concentração livreira e editorial em grandes grupos, foi o que não só condenou grande parte das livrarias de referência de pequena e média dimensão, como produziu “um nivelamento do tipo de oferta que passou a ser feito neste mercado”. Porque “apesar de estas cadeias serem concorrentes, não pertencendo ao mesmo capital, a lógica gestionária que seguem é a mesma: trabalhar com novidades, basicamente ficção e best-sellers; manter uma alta rotatividade de livros; não possuir fundos nas livrarias (ou seja, não constituir boas secções temáticas com livros que foram editados ao longo dos anos); oferecer títulos que saíram nas últimas semanas e que vão ter uma breve passagem pelas livrarias, excepção feita àqueles que se mostrarem altamente lucrativos”. Tudo o resto, e mesmo a literatura chamada “light”, passa por um processo de reciclagem permanente. A maioria dos títulos editados, após um breve desfile pelas livrarias volta assim bem depressa aos armazéns dos editores e chegam a ser dados como esgotados quando na verdade são apenas livros que se perdem algures quando não são destinados a vendas de saldos ou, no caso dos grandes grupos editoriais, são simplesmente destruídos, servindo o fabrico de nova pasta de papel para dar seguimento a este ciclo industrial de morte antecipada.


Questionado quanto a se há alguma racionalidade que justifique este modelo, Eduardo diz que lhe parece irracional aplicado ao mercado dos livros como a tantos outros. Afinal o que se pode esperar da “produção sistemática de bens – uma das lógicas na base da sociedade de consumo – com os bens transformados em produtos que são destruídos e substituídos em função de campanhas de marketing e de modas?” Um regime que se torna contraditório e que ofende qualquer entendimento que ainda atribua valor ao livro como suporte privilegiado no espaço cada vez mais ameaçado da cultura.
“No entanto, como muito boa gente diz por aí, e principalmente os gestores dos grandes grupos editoriais, o livro é um produto comercial, sujeito portanto a todas estas regras e a este modelo. Modelo que foi importado, depois de se generalizar por todo o mundo, como, aliás, está bem descrito no último livro que editámos [”O Negócio dos Livros. Como os Grandes Grupos Económicos Decidem o Que Lemos”, de André Schiffrin], onde se mostra como, com a chegada destes paradigmas económicos à realidade editorial e livreira, o livro foi reduzido a essa condição, um produto comercial com um prazo de validade limitado”, desabafa Eduardo, acrescentando: “Ninguém já equaciona que um livro possa ser editado para se vender ao longo de décadas nem, muito menos, ao longo de séculos. Não obstante, nós sabemos que é assim que se vende um livro. Não nos passaria pela cabeça que um grande autor, seja ele um Shakespeare seja um Alexandre Herculano, tenha uma obra sua editada ou reeditada hoje e que venda milhares e milhares de exemplares em dois ou três meses. Sobretudo num contexto adverso, e ainda mais num mercado relativamente pequeno como o português.”
Ao sair da Letra Livre, subindo a calçada para me ver desaguar no mar ressacado dos vendilhões do Chiado, segue uns passos à minha frente a convicção de que, se esta não é a única livraria da cidade, é certamente a última, pois nenhuma outra está tão firme no presente nem mantém acesa a memória de um tempo em que as livrarias eram os recantos onde ganhava forças o sangue antigo de Lisboa.

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