segunda-feira, 2 de julho de 2012

Arquitectos, património e a síndroma criadora Por António Sérgio Rosa de Carvalho TERÇA-FEIRA 27/11/2001 IN PÚBLICO



Arquitectos, património e a síndroma criadora
Por António Sérgio Rosa de Carvalho
TERÇA-FEIRA 27/11/2001 IN PÚBLICO

Foi-nos anunciado que, no próximo dia 29 de Novembro, irá tomar lugar no Laboratório Nacional de Engenharia Civil um encontro que pretende discutir o futuro da Baixa como conjunto patrimonial, eventualmente propor a sua classificação como Património Mundial e sensibilizar a opinião pública.Simultaneamente, fomos também confrontados com uma surpreendente proposta de arquitectos e engenheiros para cobrir a Baixa com uma estrutura retráctil. Será esta a melhor maneira de sensibilizar a opinião pública para o imperativo de uma recuperação da Baixa à altura da sua importância histórica e da urgência do seu repovoamento?Francamente, depois do programa de valorização de Lisboa Valis e do elevador do castelo, já nada nos surpreende. Mas pensávamos que os arquitectos e os engenheiros se tinham deixado destas coisas...Talvez a próxima proposta seja a concretização da utópica cúpula geodésica de Buckminster Fuller, mas agora cobrindo Óbidos, tipo campânula transparente a envolver bolo em confeitaria Pompadour.Tudo isto é ilustrativo da confusão que reina em terras lusas no que respeita às definições delimitadoras do que é um arquitecto de restauro e do que é um arquitecto criador. Dos limites impostos pela pertença colectiva do património arquitectónico, como teatro de memória, à síndroma criadora do arquitecto.É preciso dividir as responsabilidades. Uma parte da culpa reside nos arquitectos. Outra parte nas instituições oficiais de defesa do património, exercendo ou não a sua responsabilidade disciplinadora. Uma outra parte no sistema de ensino, onde a consciencialização histórica dos futuros arquitectos não é feita por historiadores de arquitectura (licenciados na perspectiva de Letras e, portanto, não sofrendo da síndroma criadora), mas por arquitectos subjectivamente autodidactas nas áreas históricas. Nos países do Norte da Europa, o ensino da História de Arquitectura é exercido por historiadores (de arquitectura). As outras áreas - projecto, estruturas - por arquitectos, engenheiros. Um arquitecto de restauro é formado exclusivamente com uma especialização nesse sentido, e geralmente só faz restauro. É detentor de um código que aplica com rigor ético.Em Portugal, a XVII Exposição Europeia deixou-nos com um festival de intervenções ambíguas. A Casa dos Bicos foi aumentada, baseando-se correctamente nas fontes iconográficas posteriores à época, mas não sem se ter feito um "abrilhantamento criativo" das janelas, num álibi "patrimonialmente correcto", mas que esconde atrás do argumento da Carta de Veneza uma síndroma criadora. Isto para não falar da fachada das traseiras, que apresenta a qualidade de uma agência bancária de província, ou do interior, "pioneiro" de simbolismos e dinâmicas protodesconstrutivas. Seguiram-se as irresponsáveis coberturas dos Jerónimos e da Torre de Belém.Para não nos alargarmos, ficaremos por um último exemplo: a própria Casa dos Arquitectos, templo ou cabana primitiva de exemplos e virtudes, emanando referências didácticas. Isto é, a transformação dos Banhos de S. Paulo em sede da ordem. Está bem, não se tratava propriamente das Termas de Caracalla, mas apenas de um modesto - mas raro - exemplo do neoclassicismo em Portugal. O "restauro", ou recuperação, levou à total destruição do interior do edifício e à total alienação do exterior. E eu que pensava que um f+bpedimentof-b era uma referência de virtudes cívicas e um arquétipo tectónico... afinal é uma moldura para espelhos de barbear. Ou será detentor de um simbolismo mais profundo, dirigido à memória das manipulações científicas e militares de Arquimedes ? Andávamos preocupados pelo misterioso caso da Quinta da Bacalhoa, que, na sua gravidade, só pode ser comparado à destruição de uma parte da Torre de Belém. Mas tranquilizaram-nos pela atitude firme no golfe das Amoreiras. Andávamos preocupados por nos sentimos secundarizados, desconvidados ou mesmo ignorados na Europa. Afinal, podemos consolar-nos com o reconhecimento da nossa criatividade única.Mal acabámos de acordar para o verdadeiro pesadelo, ao reconhecermos que os nossos centros históricos constituem o último reduto de resistência à destruição e ao caos que nos rodeiam, e já estamos a propor uma "Manhattan" de Cacilhas. Ainda não definimos a tal filosofia global, coerente, unificada e rigorosa para a intervenção na Baixa, e já estamos a propor coberturas surrealistas. Perante o desafio do caos urbanístico e das inqualificáveis periferias, verdadeiras "bombas-relógio", um programa de tertúlias resolveu convidar ilustres participantes.Num rasgo de criatividade, ilustrando uma leviandade pós-moderna própria daqueles que usufruem do dom da graça todos os dias, um dos seus representantes deixou-nos com uma conclusão profunda e uma imagem inspiradora. Referindo-se à superioridade das nossas cidades sobre as "civitas" do Norte da Europa, que estão prisioneiras e sofrem dos horrores da civilização, rematou: "As nossas são mais rascas, mais ordinárias, mais mulatas." Palavras para quê ? É um artista português.

                                           Historiador de Arquitectura

Sem comentários: